O domingo realmente é o dia do Senhor?

Faixa de seção
 domingo o dia do Senhor

A crença na santidade do domingo como o dia do Senhor é um tema central compartilhado por católicos e protestantes. Ambas as tradições consideram o domingo como o “Dia do Senhor”, instituído por Cristo e seus apóstolos para celebrar a ressurreição do Salvador. No entanto, nos dias de hoje, um declínio alarmante na observância do domingo desafia a concepção tradicional de que o primeiro dia da semana seja um dia santo. No Brasil, por exemplo, a taxa de fiéis que frequentam as missas é de apenas 8%, ficando atrás apenas da Holanda, com 7%.1

Para muitos líderes religiosos, essa queda na frequência em cultos e missas representa uma ameaça à sobrevivência não apenas de suas igrejas, mas também do próprio cristianismo. Afinal, a essência da fé cristã reside no relacionamento com Deus. Se os fiéis negligenciam o Senhor no dia que eles mesmos consideram sagrado, as chances de que o ignorem nos outros dias da semana também são altas.

Conscientes das graves consequências dessa crise para o futuro do cristianismo, líderes religiosos e teólogos têm se dedicado a reexaminar a história e a teologia do domingo, buscando formas mais eficazes de promover a santidade desse dia. O principal questionamento em pesquisas recentes, teses de doutorado, livros e artigos sobre o tema gira em torno da relação entre o domingo e o sábado bíblico.

Em outras palavras, o que se procura saber é: o domingo se iniciou como continuação do sábado, herdando assim a santidade sabática? Ou o domingo surgiu como uma nova instituição, radicalmente diferente do sábado, estabelecida pela Igreja para celebrar a ressurreição de Cristo através da Ceia do Senhor?

Para responder a essas e outras perguntas relacionadas à crença na santidade do domingo, faremos uma análise criteriosa dos principais argumentos bíblicos e históricos comumente utilizados para defender a origem “bíblica e apostólica” da observância dominical. Vamos lá!

A relação teológica entre o sábado e o domingo

Há atualmente duas principais teorias sobre a origem do domingo e sua relação com o sábado bíblico:

  • A concepção mais antiga e tradicional, datada do início do cristianismo, propõe uma descontinuidade radical entre o sábado e o domingo. Segundo essa visão, os dois dias diferem em origem, significado e experiência. O domingo não seria uma mera continuação do sábado, mas sim uma nova instituição cristã, instituída para celebrar a ressurreição de Cristo.

  • A concepção mais recente, formulada pelo Papa João Paulo II em sua carta pastoral Dies Domini, defende que o domingo surgiu como a corporificação e plena expressão do sábado. Dessa forma, o domingo herdaria a santidade e o caráter obrigatório do sábado, devendo ser guardado como um imperativo bíblico.

Vamos entender isso com mais detalhes.

Crença tradicional: o domingo foi instituído pela igreja Católica

De acordo com a perspectiva tradicional da Igreja Católica e das denominações protestantes luteranas, o sábado era uma instituição mosaica temporária, destinada exclusivamente aos judeus e abolida por Cristo. Consequentemente, não se aplica mais à cristandade atual. Os cristãos, em vez de uma continuação do sábado bíblico, adotaram a guarda do domingo como uma nova instituição estabelecida pela Igreja para celebrar a ressurreição de Cristo através da Santa Ceia.

Para teólogos e historiadores católicos, essa distinção é um fato incontestável. Tomás de Aquino, em sua obra Suma Teológica, afirma: “Na Nova Lei, a guarda do dia do Senhor tomou o lugar da guarda do sábado, não por virtude do preceito [o mandamento do sábado], mas pela instituição da Igreja e o costume do povo cristão.”

Vincent J. Kelly, em sua tese na Catholic University of America, corrobora essa visão: “Alguns teólogos defendem que Deus determinou diretamente o domingo como dia de culto da Nova Lei, que ele próprio substituiu de maneira explícita o sábado pelo domingo. Mas essa teoria foi completamente abandonada. Defende-se agora de maneira geral que Deus simplesmente deu à sua igreja o poder para separar que dia ou dias lhe parecessem adequados como dias Santos. A igreja escolheu o domingo, o primeiro dia da semana; e, no decorrer do tempo, acrescentou outros dias como dias Santos.”3

O novo Catecismo da Igreja Católica também reforça a descontinuidade entre a guarda do sábado e do domingo: “O domingo se distingue claramente do sábado, ao qual sucede cronologicamente a cada semana; para os cristãos, sua observância espiritual substitui aquela do sábado.”4

Interpretações recentes: o domingo é a continuação e “plena expressão” do sábado

Nos últimos anos, estudiosos católicos e protestantes têm defendido a ideia de que a guarda do domingo possui origens apostólicas. Segundo essa perspectiva, foram os próprios apóstolos, nos primórdios do cristianismo, que escolheram o primeiro dia da semana como o novo “sábado cristão”, a fim de celebrar a ressurreição de Cristo.

Em sua carta pastoral Dies Domini, o Papa João Paulo II aprofundou essa visão, defendendo a revitalização da observância do domingo com base no imperativo moral do mandamento do sábado. Para o Papa, o domingo deveria ser guardado não apenas como uma instituição da Igreja Católica, mas principalmente como um dever moral presente no Decálogo. Essa argumentação se fundamenta na crença de que o domingo é herdeiro da santidade do sábado e, portanto, deve ser observado como o “sábado bíblico”.5

Presumivelmente, a intenção de João Paulo II era desafiar os cristãos a respeitarem o domingo não apenas como uma instituição da Igreja, mas como um mandamento divino. Essa tentativa do Papa, juntamente com outros líderes religiosos, de fundamentar a guarda do domingo no mandamento do sábado reacende uma importante questão: se os cristãos são chamados a observar o domingo como o sábado bíblico, por que não guardar o próprio sábado? Qual era o problema com o sábado bíblico que o levou a ser substituído pelo domingo?

Aplicar o mandamento do sábado à guarda do domingo, o primeiro dia da semana, é, no mínimo, desconcertante. Afinal, o quarto mandamento prescreve a santificação do sétimo dia da semana, e não do primeiro. Essa contradição talvez explique por que muitos cristãos não levam a sério a observância do domingo. O sábado bíblico, presente na semana da criação e constituindo o quarto mandamento da lei de Deus, nos lembra que o universo e a história pertencem a Deus. Ele é um memorial da criação e o dia escolhido por Deus para o nosso descanso.

Domingo como a Personificação do Sábado

Em vista dessas ponderações teológicas sobre o sábado como um memorial da criação e uma expressão definidora de nosso relacionamento com Deus, surge a questão de como o Papa João Paulo II desenvolveu uma justificativa teológica para a guarda do domingo. Ele fez isso apelando para o domingo como a personificação e plena expressão do sábado bíblico. Que audácia, não é mesmo?

João Paulo II aplicou ao domingo a bênção e a santificação que Deus destinou ao sábado na criação. Ele afirmou: “O domingo é o dia de descanso porque é o dia ‘abençoado’ por Deus e por Ele ‘santificado’, isto é, colocado à parte dos demais dias para ser, entre eles, ‘o dia do Senhor’.”6

O Papa defendeu ainda que os cristãos do Novo Testamento “assumiram como festivo o primeiro dia depois do sábado” porque descobriram que as realizações criativas e redentivas celebradas pelo sábado encontraram na morte e ressurreição de Cristo o seu cumprimento.7

No entanto, a tentativa do Papa de fazer do domingo a “extensão e personificação plena” do significado criativo e redentivo do sábado é algo muito habilidoso, mas carece de apoio bíblico e histórico.

Além disso, o Novo Testamento não apresenta nenhuma indicação de que os primeiros cristãos interpretaram o domingo como herdeiro da santidade do sábado, dia que corporificava seu significado criativo e redentor. Sob uma perspectiva bíblica e histórica, o domingo se distingue do sábado por diferenças em autoridade, significado e experiência.

Veja essas diferenças mais detalhadamente:

1. Diferença em autoridade

A distinção fundamental reside na autoridade por trás da guarda de cada dia. A santificação do sábado encontra seu fundamento em um mandamento bíblico explícito (Gn 2:2-3; Êx 20:8-11; Mc 2:27-28; Hb 4:9), enquanto a observância do domingo deriva de uma convergência de fatores sociais, políticos e religiosos pagãos, ou seja, da vontade de seres humanos falhos e pecadores.

Essa fragilidade na base bíblica do domingo, a ausência de ao menos um versículo que o institua como dia santo, talvez seja, de fato, o principal fator que contribui para a “crise dominical” lamentada por João Paulo II. A grande maioria dos cristãos, especialmente no mundo ocidental, tende a enxergá-lo mais como um feriado propício à busca de prazeres e ganhos pessoais do que como um dia sagrado dedicado à busca da paz e da presença divina.

2. Diferença em significado

O Papa João Paulo II reconheceu a necessidade de tornar a guarda do domingo uma obrigação moral, tentando encontrar suas raízes no mandamento do sábado. No entanto, isso é obviamente impossível, pois o domingo não é o sábado.

Na Bíblia, o sábado comemora a criação perfeita de Deus, a redenção completa e a restauração final. Já o domingo, segundo a mais antiga literatura patrística, é apresentado como a comemoração da criação da luz e o memorial da ressurreição de Cristo.8

Curiosamente, em nenhum dos significados históricos atribuídos ao domingo, é exigida a adoração a Deus ou a prática do repouso. Em nenhum lugar da Bíblia, por exemplo, há qualquer ordem divina exigindo o descanso no domingo por causa da criação da luz nesse dia, nem que deva ser um dia de adoração devido à ressurreição de Cristo.

3. Diferença em experiência

A diferença entre o sábado e o domingo também se reflete na experiência. Enquanto o domingo geralmente começa e se mantém como um período de algumas horas de culto, a santificação do sábado é descrita nas Escrituras como um período de 24 horas consagrado a Deus.

Apesar dos esforços feitos por Constantino, pelos conselhos da igreja e pelos puritanos para transformar o domingo em um dia completo de repouso e adoração, a realidade histórica é que a guarda do domingo frequentemente se limita apenas à ida à igreja neste dia.

Essa é uma realidade inegável e amplamente reconhecida. O Catecismo da Igreja Católica, por exemplo, afirma: “A celebração dominical do dia e da eucaristia do Senhor está no coração da vida da Igreja.”9

Para a maioria dos cristãos, o término da missa ou do culto dominical marca também o fim da observância do domingo. Após cumprir o ritual na igreja, eles retornam às suas atividades cotidianas sem sentir-se culpados, como fariam em qualquer outro dia.

Culto Dominical versus dia de Descanso e adoração

Em seu livro “O Futuro do Domingo Cristão”, o célebre liturgista católico Christopher Kiesling reconheceu essa realidade histórica e propôs que se abandone o conceito de domingo como dia de repouso, em favor do conceito de domingo como horas de culto. Ele argumentou que, se o domingo nunca foi no passado um dia de total descanso e adoração, não há esperança de torná-lo assim na atualidade, quando a maioria das pessoas deseja apenas feriados, não dias santos.

Por outro lado, celebrar o sábado significa não apenas assistir a cultos religiosos, mas consagrar as 24 horas do dia ao Senhor. Quando nos voltamos para Êxodo 20:8-11, o mandamento do sábado não diz para lembrarmos do dia de sábado frequentando reuniões da igreja. O que o mandamento requer é trabalhar seis dias e descansar no sétimo dia para o Senhor (Êxodo 20:8-11).

Isso significa que a essência da santificação do sábado é a consagração do tempo. O ato de descansar para o Senhor torna sabáticas todas as atividades, sejam elas adoração formal, companheirismo informal ou recreação, transformando-as em atos de adoração, porque todas partem de um coração decidido a honrar a Deus.

O ato de observar o sábado como um dia dedicado ao Senhor se configura como o meio pelo qual os crentes obtêm acesso ao descanso divino, conforme descrito em Hebreus 4:10. Através dessa prática, vivenciam, da forma mais plena e espontânea possível, a percepção da presença, paz e repouso que Deus oferece. Essa experiência proporcionada pela santificação do sábado se diferencia substancialmente da guarda do domingo, pois a essência do feriado dominical não reside na consagração do tempo, mas sim no comparecimento à igreja.

Diante disso, concluímos que a tentativa do Papa de instituir o domingo como a representação teológica e existencial do sábado está fadada ao fracasso. Essa falha reside na natureza intrinsecamente divergente dos dois dias, que se diferenciam radicalmente em termos de autoridade, significado e experiência proporcionada.

Para mais conteúdos como este e para desvendar os segredos por trás da mudança do sábado para o domingo, continue acompanhando nosso blog!

Que Deus o abençoe!


Referências:

1 Confira em: Templário de Maria

2 Thomas Aquinas, Summa Theologica (1947), II, O, 122, Art. 4, p. 1702.

3 J. Kelly, Forbidden Sunday and Feast-Day Occupations (1943), p. 2.

4 Catecismo da Igreja Católica, (1994), p, 524.

5 Dies Domini, parágrafo 17.

6 Ibid., parágrafo 14.

7 Ibid., parágrafo 18.

8 Samuele Bacchiocchi, From Sabbath to Sunday: A Historical Investigation of the Rise of Sunday Observance in Early Christianity (1977), cap. 9, p. 270–302.

9 Dies Domini, parágrafo 32.

Fonte das imagens: freepik.com

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Amós Bailiot

Sou um estudante de História na Universidade Estácio de Sá e um entusiasta em Teologia. Acredito que o conhecimento é valioso apenas quando compartilhado. É por isso que estou aqui, disposto a compartilhar minhas reflexões teológicas. Junte-se a mim nessa jornada!

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Amós Bailiot

Graduando em História pela Universidade Estácio de Sá e estudioso de Teologia, defende a premissa de que o conhecimento se torna verdadeiramente valioso quando compartilhado. Junte-se a mim nessa jornada!

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