Quem Eram os Nefilins? A Verdade Sobre os Gigantes

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Quem Eram os Nefilins?

A menção dos Nefilins em Gênesis 6:4“Naqueles dias estavam os Nefilins na terra, e também depois, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens, as quais lhes deram filhos; esses foram valentes, varões de renome, na antiguidade” — é um dos textos mais enigmáticos das Escrituras.

Tradicionalmente associados a gigantes mitológicos, sua identidade tem gerado debates acadêmicos e teológicos há séculos. Este artigo busca desvendar o mistério dos Nefilins por meio de uma análise tríplice: linguística, histórica e teológica, confrontando interpretações literais com o contexto cultural e teológico do Antigo Oriente Próximo.

Análise Linguística: Decifrando o Termo “Nefilim”

1. Etimologia e Raízes Semíticas

A palavra נְפִלִים (Nefilim) deriva da raiz hebraica נָפַל (naphal), que significa “cair”. Contudo, seu uso no texto bíblico não se restringe ao sentido físico. Em Ezequiel 32:27, por exemplo, guerreiros mortos são chamados de נֹפְלִים (noflim), “caídos”, aludindo a sua queda em batalha, não a uma condição física. Salmos 72:9 também emprega o verbo יִפְּלוּ (yiplu), “cairão”, para descrever a submissão política de inimigos. Esses usos sugerem que Nefilim pode denotar uma queda moral ou social, não necessariamente estatura física.

A raiz naphal também aparece em contextos que indicam declínio ou ruína, como em Isaías 21:9, onde Babilônia é descrita como “caída” (naphalah). Isso reforça a ideia de que o termo Nefilim pode estar mais relacionado a uma condição de degradação ética ou espiritual do que a uma característica física.

2. Traduções Antigas e Influências Culturais

A Septuaginta (século III a.C.), tradução grega do Antigo Testamento, verteu Nefilim como γίγαντες (gigantes), termo associado aos titãs da mitologia grega. Essa escolha reflete um sincretismo cultural, pois os tradutores judeus de Alexandria adaptaram o texto a conceitos helenísticos. Contudo, o termo hebraico גִּבֹּרִים (giborim), usado em paralelo a Nefilim em Gênesis 6:4, significa “poderosos” ou “valentes”, não “gigantes”. Em Gênesis 10:8–9, giborim descreve Ninrode, um caçador habilidoso, e em 2 Samuel 23:8, os guerreiros de Davi — figuras humanas, não sobrenaturais.

A Vulgata Latina, tradução de Jerônimo no século IV d.C., também optou por “gigantes”, consolidando essa interpretação no cristianismo ocidental. No entanto, é importante notar que essas traduções foram influenciadas por contextos culturais posteriores, que não necessariamente refletem o significado original do termo hebraico.

3. Comparação com Termos Cognatos

Em ugarítico, língua semítica próxima ao hebraico, a raiz npl também aparece em contextos de derrota ou declínio moral. Textos de Ugarit (século XIII a.C.) descrevem guerreiros “caídos” (nplm) em batalhas, reforçando a ideia de que Nefilim pode simbolizar líderes corruptos ou derrotados, não seres híbridos. Além disso, em acadiano, a raiz napalu é usada para descrever a queda de reis ou governantes, indicando uma conotação de perda de poder ou status.

Portanto, a tradução de Nefilim como “gigantes” é anacrônica, influenciada por mitologias helênicas. O termo hebraico aponta para uma “queda” ética ou social, vinculada à corrupção pré-diluviana. A análise linguística sugere que os Nefilins eram figuras de destaque que, em vez de liderar com justiça, caíram em decadência moral, tornando-se símbolos de uma sociedade corrupta.

Contexto Histórico-Cultural: Mitos do Antigo Oriente Próximo

1. Paralelos com Narrativas Mesopotâmicas

A Epopeia de Gilgamesh (século XVIII a.C.) menciona apkallu, seres semidivinos associados à sabedoria primordial. Já o mito de Atrahasis descreve deuses (Igigi) que se rebelam contra o trabalho forçado e criam humanos híbridos. Essas narrativas refletem um imaginário comum no Antigo Oriente Próximo, onde a mistura entre divindades e humanos simbolizava caos moral.

Contudo, o relato bíblico diferencia-se ao apresentar os Nefilins como consequência da rebelião humana, não divina. Enquanto os mitos pagãos glorificam híbridos, a Bíblia os associa à corrupção que antecede o Dilúvio (Gênesis 6:11–13). A narrativa bíblica enfatiza a responsabilidade humana e a justiça divina, em contraste com a visão mitológica de conflitos entre deuses.

2. A Torre de Babel e a Busca por Fama

A expressão אַנְשֵׁי הַשֵּׁם (anshei hashem), “varões de renome” (Gênesis 6:4), ecoa a ambição dos construtores de Babel: “Façamos para nós um nome” (Gênesis 11:4). Ambas as narrativas vinculam a arrogância humana ao juízo divino, sugerindo que os Nefilins eram líderes que buscaram poder à margem de Deus. A busca por fama e glória, em detrimento da obediência a Deus, é um tema recorrente no Antigo Testamento, culminando no julgamento divino.

Análise Teológica: Desconstruindo a Teoria Angelical

1. Os “Filhos de Deus” (בְּנֵי־הָאֱלֹהִים) em Debate

A interpretação de que בְּנֵי־הָאֱלֹהִים (Benê Elohim) em Gênesis 6:2 seriam anjos baseia-se em Jó 1:6 e 38:7, onde o termo designa seres celestiais. Contudo, o contexto de Gênesis 6 é terrestre: casamentos, procriação e corrupção social. Além disso, o Antigo Testamento frequentemente chama Israel de “filhos de Deus” (Deuteronômio 14:1; Êxodo 4:22), um título outorgado a humanos em aliança com Yahweh.

2. A Natureza dos Anjos na Bíblia

Jesus, ao responder aos saduceus sobre a ressurreição, declarou: “Porque na ressurreição nem casam, nem se dão em casamento; mas serão como os anjos no céu” (Mateus 22:30). Essa afirmação revela uma característica fundamental dos anjos: eles são seres que não participam de uniões matrimoniais nem se reproduzem. Ao contrário dos humanos, que foram criados para se multiplicar e encher a terra (Gênesis 1:28), os anjos não possuem esse propósito.

Essa natureza, provavelmente assexuada, dos anjos é reforçada por outras passagens bíblicas. Por exemplo, em Lucas 20:34–36, Jesus explica que os ressuscitados serão “iguais aos anjos” e não estarão sujeitos à morte ou ao casamento. Isso invalida a ideia de que anjos poderiam se unir a seres humanos para gerar descendentes, como propõe a teoria dos “anjos caídos” associada aos Nefilins.

Portanto, a afirmação de Jesus não apenas esclarece a natureza dos anjos, mas também refuta interpretações que sugerem uma união sexual entre anjos e humanos, como aquelas presentes em textos extra-bíblicos, como o Livro de Enoque. A teologia bíblica é clara: os anjos são seres criados para servir a Deus, e não para se reproduzir ou se relacionar maritalmente com humanos.

3. Problemas com o Livro de Enoque

O Livro de Enoque (século II a.C.) popularizou a narrativa de anjos caídos (Gregori) que geraram gigantes com mulheres humanas. Porém:

  • Anacronismo: O texto foi escrito milênios após Gênesis, sem vínculo com a autoria mosaica.
  • Exageros Mitológicos: Afirma que os gigantes mediam “trezentos côvados” (cerca de 135 metros; Enoque 7:2), uma fantasia incompatível com a antropologia bíblica.
  • Rejeição Canônica: Nem Jesus nem os apóstolos citaram Enoque como autoritativo. A alusão em Judas 14–15 é similar à citação de poetas pagãos por Paulo (Atos 17:28), sem endossar o livro inteiro.
  • Falta de Autoridade Divina: Enquanto os livros apócrifos podem ter algum valor histórico ou literário, eles não foram considerados inspirados por Deus. Portanto, não podem ser usados para fundamentar doutrinas, como é o caso da explicação dos Nefilins como descendentes de anjos.

A Interpretação Setita: Linhagens em Conflito

1. A Divisão entre Sete e Caim

Gênesis 4–5 estabelece duas linhagens:

  • Os de Caim: Associados à violência (Caim), poligamia (Lameque) e tecnologia apartada de Deus (Gn 4:17–24).
  • Os de Sete: Chamados a “invocar o nome do Senhor” (Gn 4:26), representando a linhagem piedosa.

A união entre essas linhagens (Gn 6:2) corrompeu a ordem social, gerando líderes (Nefilim) que substituíram a devoção a Yahweh pela busca desenfreada por poder e satisfação própria.

2. Poligamia e Violência como Sinais de Decadência

A frase “tomaram para si mulheres de todas as que escolheram” (Gn 6:2) indica poligamia desregrada, violando o ideal monogâmico de Gênesis 2:24. Essa prática, somada à violência que “encheu a terra” (Gn 6:11), reflete uma sociedade que perverteu o mandato cultural de dominar a terra (Gn 1:28) em opressão.

Implicações Teológicas: O Dilúvio como Julgamento e Recriação

A corrupção dos Nefilins não foi mera desobediência, mas uma ruptura cósmica da aliança divina. O Dilúvio, portanto, além de uma punição, foi um ato de desfazer e refazer a criação:

  • Desfazer: As águas do Dilúvio revertem a separação primordial entre “águas de cima” e “águas de baixo” (Gn 1:6–7; 7:11).
  • Refazer: A arca preserva a vida, simbolizando uma nova humanidade sob Noé, o “resto fiel”.

Conclusão

A análise linguística, histórica e teológica revela que os Nefilins não eram seres gigantes sobrenaturais, mas sim líderes corruptos de uma sociedade pré-diluviana que se afastou da aliança divina. O termo Nefilim, que significa “caídos”, simboliza a decadência moral desses líderes, enquanto giborim, traduzido como “poderosos”, expõe sua ambição desmedida e a opressão que exerceram sobre outros.

Embora a teoria que defende uma origem angelical seja popular, ela carece de uma fundamentação exegética robusta e contradiz a antropologia bíblica, a qual destaca a natureza humana e sua responsabilidade diante de Deus. Por outro lado, a interpretação setita se alinha harmoniosamente ao tema central de Gênesis 3:15.

A narrativa dos Nefilins, portanto, nos serve de advertência: a busca desenfreada por poder e fama, em detrimento dos princípios divinos, inevitavelmente conduz à ruína tanto coletiva quanto individual. Em contrapartida, a humildade e a obediência a Deus são os verdadeiros caminhos para o sucesso genuíno na vida. Como afirma o Salmo 1:

“Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios […] mas tem o seu prazer na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite.”


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Amós Bailiot

Sou um estudante de História na Universidade Estácio de Sá e um entusiasta em Teologia. Acredito que o conhecimento é valioso apenas quando compartilhado. É por isso que estou aqui, disposto a compartilhar minhas reflexões teológicas. Junte-se a mim nessa jornada!

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Amós Bailiot

Graduando em História pela Universidade Estácio de Sá e estudioso de Teologia, defende a premissa de que o conhecimento se torna verdadeiramente valioso quando compartilhado. Junte-se a mim nessa jornada!

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