A Doutrina da Trindade Foi Criada no Concílio de Nicéia?

Faixa de seção
A Doutrina da Trindade Foi Criada no Concílio
Imperador constantino.

Introdução

Diversos movimentos antitrinitarianos utilizam um argumento histórico comum: a ideia de que a doutrina da Trindade se originou no Concílio de Nicéia e foi imposta como um dogma sob a influência de Constantino. Essa alegação tem sido amplamente difundida em sites na internet e em materiais de grupos dissidentes do adventismo.

Afirmações como “o Concílio de Nicéia introduziu a crença em três deuses; a doutrina da Trindade de pessoas divinas não veio da Bíblia, mas desse concílio histórico, que reuniu 318 bispos em 325 d.C.” ilustram essa perspectiva. Alguns vão ainda mais longe, afirmando que a formulação do dogma antiariano representou o início oficial da “Besta do Apocalipse”.

No entanto, tal visão contraria a interpretação histórica adventista1, que identifica a Besta de Apocalipse 13 não com Constantino, mas com o papado, especialmente após o século IV. Ellen White, por exemplo, distingue a ascensão papal como o verdadeiro cumprimento dessa profecia2.

Embora o governo de Constantino tenha contribuído para um período de crescente apostasia na Igreja, as implicações proféticas de Apocalipse 13 apontam para uma era posterior, marcada pela supremacia papal e os 1.260 anos de domínio que começaram em 538 d.C. Importa lembrar que Constantino nunca foi papa, nem se autoproclamou Pontifex Maximus do cristianismo. O bispo de Roma, por sua vez, ainda não detinha o poder absoluto que caracterizaria o papado nos séculos seguintes. Assim, a vinculação de Constantino com a figura da Besta é, no mínimo, absurda3.

Apesar disso, há quem sustente que a doutrina da Trindade nasceu sob a influência direta do imperador e que a decisão do Concílio foi manipulada para atender seus interesses políticos. No entanto, essa teoria se enfraquece diante do fato de que Constantino governava por decretos, como demonstrado no Édito de Milão e nas leis sobre o domingo4. Se ele quisesse impor a Trindade, um simples decreto teria sido suficiente — dispensando qualquer necessidade de votos conciliares. Essa incoerência raramente é considerada pelos defensores dessa hipótese.

O objetivo deste estudo é examinar se há fundamento histórico para tais alegações. A doutrina da Trindade foi realmente um dogma formulado por Constantino? Foi o Concílio de Nicéia o ponto de partida dessa crença?

Para responder a essas questões, analisaremos os escritos de teólogos cristãos entre os séculos II e III, anteriores ao Concílio. Se a Trindade fosse uma invenção do século IV, não deveria haver qualquer menção anterior à ideia de um Deus triúno. Esperaríamos, em vez disso, doutrinas que apresentassem Cristo como subordinado ao Pai e o Espírito Santo como uma força impessoal.

Além disso, revisaremos os eventos que levaram ao Sínodo Niceno e o papel desempenhado por Constantino, buscando separar fato de ficção. Por fim, será feita uma reflexão equilibrada sobre o impacto do Concílio para a Igreja, contrapondo-se à visão de que ele introduziu elementos de apostasia não discutidos em sua agenda.

É importante ressaltar que este artigo tem um foco histórico, não exegético. As bases bíblicas da Trindade estão bem estabelecidas em outras análises, e a discordância de alguns intérpretes não elimina a solidez desses fundamentos. Do mesmo modo, a validade do sábado no Novo Testamento é contestada por muitos, embora os adventistas defendam consistentemente sua relevância há mais de um século.

Os Pais da Igreja

Ao examinar os Pais da Igreja que viveram antes do Concílio de Nicéia, é possível identificar duas abordagens distintas. Autores católicos frequentemente demonstram uma visão mais reverente, enquanto os protestantes adotam uma postura mais crítica e cuidadosa5.

Isso se explica pelo fato de que o catolicismo reconhece a tradição pós-bíblica como uma fonte legítima de doutrina, elevando os Pais da Igreja à condição de “autores inspirados”, cuja orientação seria comparável à dos escritores bíblicos6. Já o protestantismo, fiel ao princípio da sola scriptura, considera os escritos patrísticos apenas como testemunhos históricos que refletem o desenvolvimento de uma doutrina ao longo do tempo, sem atribuir a eles autoridade doutrinária7.

Com essa perspectiva, ao analisar as citações patrísticas a seguir, é importante destacar algumas considerações de uma abordagem adventista sobre esses escritores:

  1. Testemunho sobre o cristianismo primitivo:
    Os Pais da Igreja fornecem um registro de como o cristianismo inicial entendia as Escrituras antes da influência do catolicismo medieval. Alguns desses autores, como Clemente de Roma e Policarpo, conviveram diretamente com os apóstolos e foram por eles reconhecidos como líderes legítimos da Igreja, o que confere um valor significativo às suas interpretações das doutrinas apostólicas.
  2. Ortodoxia e combate às heresias:
    Embora não houvesse plena unanimidade de pensamento nesse período, é evidente que os Pais da Igreja distinguiam claramente o ensino apostólico ortodoxo8 das heresias que emergiam, como as de Marcião e os movimentos gnósticos9. Elementos fundamentais da fé cristã, como a filiação divina de Cristo, sua encarnação e o juízo final, já estavam solidamente estabelecidos desde os primórdios do cristianismo.
  3. Limitações teológicas e terminológicas:
    Devido ao caráter inicial de seus escritos, os termos teológicos usados pelos Pais da Igreja ainda não possuíam a precisão técnica que seria alcançada em períodos posteriores. Conceitos como hypostasis, por exemplo, eram utilizados de forma variada — às vezes como sinônimo de “pessoa”, outras como “substância”10. É preciso interpretar esses textos considerando o contexto de uma teologia ainda em formação, sem exigir deles a sistematização própria da teologia pós-nicena.
  4. Escritos patrísticos como testemunhos, não doutrinas:
    Embora tenham grande valor como testemunhas históricas, os Pais da Igreja não devem ser considerados fontes de doutrina. Nenhum deles reivindicou inspiração divina ou autoridade profética. A base da fé cristã continua sendo exclusivamente a Bíblia. Seus escritos servem para esclarecer o que está nas Escrituras, mas não para criar novas doutrinas.
  5. Relevância profética:
    O valor dos Pais da Igreja também é destacado na mensagem à Igreja de Esmirna, descrita em Apocalipse 2:8-11. Esse período foi marcado pela fidelidade desses cristãos, muitos dos quais selaram seu testemunho com o martírio. Curiosamente, essa carta não apresenta nenhuma repreensão a essa comunidade, mas exalta sua fé e coragem.
  6. Objetivo da análise:
    Por fim, vale ressaltar que este estudo não tem a intenção de endossar indiscriminadamente todas as doutrinas defendidas pelos Pais da Igreja, mas de investigar, por meio de seus testemunhos, se a crença na Trindade já existia na Igreja pré-nicena ou se, como alguns argumentam, ela seria uma criação do Concílio de Nicéia no século IV.

A Trindade antes do Concílio de Nicéia

O uso do termo “Trindade”

Uma análise das obras contidas nas coleções Ante-Nicene Fathers e Sources Chrétiennes — que reúnem escritos dos mais antigos autores cristãos, inclusive os que antecedem o Concílio de Nicéia — revela que a crença na Trindade já havia sido formalizada muito antes desse encontro histórico11.

Surpreendentemente, o próprio termo latino Trinitas foi empregado por Tertuliano no ano de 212 d.C., ou seja, 113 anos antes de Nicéia. Nesse contexto, ele se refere ao Espírito como “aquele no qual está a Trindade de uma Divindade: Pai, Filho e Espírito Santo” (in quo est trinitas unius diuinitatis, Pater et Filius et Spiritus sanctus)12.

Além disso, a tradução latina dos escritos de Orígenes menciona o termo ao afirmar que “o batismo de salvação não se completa, a não ser sob a autoridade da excelentíssima Trindade de todos eles, constituída do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Assim, temos incluído o nome do Espírito Santo junto ao Deus eterno e ao seu Filho único.”13 Esse registro é relevante, especialmente quando se considera que, já nesse período, havia discussões acerca da fórmula batismal e da genuinidade de Mateus 28:19.

Por sua vez, Teófilo de Antioquia, escrevendo cerca de cinquenta anos antes de Tertuliano e Orígenes, usa o termo Triados, o que claramente corresponde a uma equivalência semântica de trinitas ou ao termo grego original. Ele emprega essa palavra ao fazer uma analogia poética entre os primeiros dias da criação e a Trindade divina: “os três dias que precedem os três grandes luminares são símbolos da Trindade (Triados) de Deus.”14

O fato de Teófilo se referir a “tipos da Trindade” sugere que ele não estava introduzindo um conceito novo ou criando um termo inédito. Pelo contrário, o contexto textual implica que essa expressão já era familiar aos leitores da época. Isso também abre margem para especularmos que o termo, ou variantes dele, poderia ter sido amplamente utilizado em escritos que não sobreviveram até os dias de hoje.

Dessa maneira, o uso técnico do termo Trindade remonta a cerca de um século e meio antes do Concílio de Nicéia, consolidando sua presença na literatura cristã primitiva. Surge então uma pergunta comum: por que essa palavra não é encontrada nas Escrituras? Para responder, é essencial entender a transição cultural e teológica que ocorreu no cristianismo após o século II.

O foco missionário deslocou-se definitivamente do ambiente judaico-palestino para o contexto greco-romano. A obra iniciada por Paulo entre os gentios consolidou-se e começou a confrontar questões filosóficas e ontológicas que não haviam sido debatidas no judaísmo do primeiro século.

Essa mudança exigiu que a Igreja expressasse sua fé numa linguagem acessível àqueles cuja visão de mundo era moldada pela filosofia helenística. A necessidade de traduzir conceitos teológicos em termos compreensíveis levou ao uso de palavras como hypostasis, ousia e, claro, trinitas. Porém, esse esforço de contextualização não representava uma corrupção da doutrina original.

Pelo contrário, é um exemplo do dinamismo da comunicação cristã — algo já observado no Evangelho de João, que emprega o termo logos para descrever a encarnação de Cristo, adaptando o conceito filosófico grego às verdades reveladas no Novo Testamento. Assim como João falou de forma compreensível para os efésios influenciados por Heráclito, os escritores cristãos do período pré-niceno cunharam terminologias que mantinham a essência do ensino apostólico, mesmo ao dialogar com a cultura intelectual de sua época.

Conceitos Patrísticos sobre a Trindade

Clemente de Roma, escrevendo por volta do ano 96 d.C., dirigiu uma carta de conforto aos cristãos de Corinto durante as perseguições sob o imperador Domiciano, o mesmo que exilou o apóstolo João em Patmos. Em seu apelo pela unidade da Igreja, Clemente afirmou: “Não temos nós [todos] um único Deus e um único Cristo? E não há um único Espírito da Graça derramado sobre nós?”15 

Embora esse não seja um texto apologético, a presença de uma “linguagem trinitária” implícita sugere que já se percebia uma concepção triúna de Deus, mesmo que não formulada sistematicamente. Esse reconhecimento inicial da unidade divina, expressa em três realidades distintas, é significativo ao considerarmos o desenvolvimento subsequente da doutrina da Trindade.

Inácio de Antioquia († 105 d.C.), que sucedeu Pedro como bispo de Antioquia16 e morreu mártir sob o reinado de Trajano, apresenta uma exposição ainda mais explícita da divindade de Cristo e da doutrina trinitária. Em sua epístola aos cristãos de Trália, ele exorta: “Permanecei unidos a Jesus Cristo, nosso Deus.”17 

Essa afirmação sobre a divindade de Cristo é central para a estrutura trinitariana. Em um manuscrito mais longo, ele adverte contra heresias que negavam a existência do Espírito Santo e confundiam as pessoas da Trindade como uma só. Inácio, portanto, não apenas afirmava a existência do Espírito Santo, mas defendia a distinção pessoal dentro da unidade divina.18

Justino Mártir, ativo por volta de 160 d.C., confrontou a supremacia da filosofia grega em suas apologias. Ele argumenta: “Somos considerados ateus… mas confessamos nossa adoração ao verdadeiro Deus, Pai da justiça, ao Filho… e ao Espírito Profético.” Sua confissão de adoração tripartida reflete um claro compromisso com uma teologia trinitária. Esse testemunho torna-se relevante ao iluminar o contexto filosófico de seu tempo, no qual os cristãos eram acusados de ateísmo por rejeitarem o politeísmo pagão.19

Atenágoras (175 d.C.), respondendo à mesma acusação, proclama: “Como podem chamar de ateus aqueles que reconhecem Deus Pai, Deus Filho e o Espírito Santo como um no poder, mas distintos na ordem?”20 Sua formulação salienta a unidade de essência e a distinção de pessoas, antecipando conceitos que seriam formalizados em Nicéia. Ao afirmar que a Trindade é “formada pelo Espírito, o Filho e o Pai”21, Atenágoras exemplifica como o pensamento trinitário já permeava a apologética cristã antes do quarto século.22

Ireneu de Lyon, discípulo de Policarpo, conecta sua teologia diretamente aos ensinamentos apostólicos. Sua obra Contra Heresias distingue o “fôlego de vida” dado às criaturas do “Espírito Santo” que habita nos crentes.23 

Ele descreve a Palavra e a Sabedoria de Deus como pessoas divinas em relação ao Pai, estabelecendo uma compreensão proto-trinitária com raízes apostólicas24. Sua abordagem demonstra uma continuidade de pensamento que refutava heresias gnósticas enquanto preservava a integridade da fé cristã primitiva.

Hipólito de Roma (c. 205 d.C.) apresenta uma defesa explícita da Trindade ao declarar que “a Terra é movida por estes três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.”25 Citando a fórmula batismal trinitária, ele condena aqueles que omitem qualquer uma das pessoas divinas, argumentando que a perfeita glorificação de Deus depende da plena confissão da Trindade. Hipólito também se destaca por resistir à centralização eclesiástica promovida por Calixto, reforçando que sua compreensão trinitária derivava de convicções teológicas profundas e não de imposições hierárquicas.26

Cipriano de Cartago († 250 d.C.), outro defensor da fórmula trinitária de Mateus 28:19, explica que ela indica a Trindade como a base do batismo cristão.27 Embora a comma joanina de 1 João 5:7 seja considerada espúria28, Cipriano parece aludir a essa passagem ao afirmar: “O Senhor disse: ‘Eu e o Pai somos um’; e está escrito: ‘Pai, Filho e Espírito Santo, e estes três são um.’” Embora essa referência não justifique a autenticidade textual, mostra que a ideia de unidade trinitária já circulava no pensamento teológico latino pré-niceno.29

Esses testemunhos patrísticos confirmam que a crença na Trindade precedeu o Concílio de Nicéia. Ainda que a terminologia técnica tenha se desenvolvido posteriormente, o conteúdo doutrinário essencial já estava presente nas convicções e debates da Igreja primitiva, proporcionando uma base sólida para as definições conciliares futuras.

O que realmente aconteceu em Nicéia?

Antecedentes Teológicos

Por volta de 325 d.C., a Igreja estava imersa em uma profunda controvérsia teológica que surgira no Egito. No centro desse conflito estava a doutrina de Ário, um presbítero de Alexandria, que ensinava que Cristo era uma figura criada, “semelhante” ao Pai, mas não totalmente igual a Ele. Ário e seus seguidores, como Eusébio de Nicomédia, sustentavam que o Filho, embora divino, não compartilhava da mesma substância eterna e imutável do Pai.

Para eles, Cristo ocupava uma posição de exaltada honra, mas sem ser verdadeiramente co-eterno ou consubstancial ao Pai. Essa visão estabelecia uma distinção ontológica clara entre o Pai e o Filho, o que gerava o risco de subordinar a plenitude da divindade de Cristo.

Por outro lado, um grupo liderado por Alexandre, ex-bispo de Ário, e Atanásio, seu célebre sucessor, defendia vigorosamente a igualdade plena entre o Pai e o Filho. Para eles, qualquer ensino que separasse a divindade de Cristo do Pai se aproximava perigosamente das ideias gnósticas que floresciam no Egito e em outros centros do pensamento helenístico.

A confissão cristã mais antiga, a qual eles defendiam, afirmava que Cristo estava em pé de igualdade com o Pai, compartilhando da mesma natureza divina. A preocupação de Atanásio era com a preservação da ortodoxia cristã, especialmente no tocante à relação essencial entre as duas pessoas da Trindade.

Um terceiro grupo, liderado por Eusébio de Cesaréia, representava uma postura mais conciliatória. Este grupo preferia uma solução intermediária que buscasse unificar as posições em disputa, sem comprometer os princípios fundamentais da fé cristã.

No entanto, sua proposta de neutralidade, voltada para agradar o imperador Constantino, que buscava a paz na Igreja, foi criticada por muitos como uma tentativa de evitar a confrontação teológica em favor da estabilidade política. A busca por uma declaração unificadora revelou-se um esforço para suavizar as tensões sem enfrentar as implicações doutrinárias profundas do debate.

A Influência da Filosofia Grega

Para compreender o pano de fundo do ensino ariano e as preocupações de Atanásio, é essencial levar em conta a forte influência da filosofia grega sobre a teologia do século IV. A Igreja primitiva, ao tentar comunicar sua fé em um mundo grego-romano, foi forçada a adaptar sua linguagem e conceitos às categorias filosóficas em voga.

Ellen White, com propriedade, observou que “mesmo antes do estabelecimento do papado, os ensinos filosóficos pagãos haviam recebido atenção e exercido influência na Igreja.”30 A tentação de adotar os conceitos filosóficos gregos como uma moldura para a teologia cristã foi um fenômeno recorrente, que teve profundas implicações para a formulação doutrinária da Igreja.

A sedução intelectual da filosofia helenística, especialmente o gnosticismo, foi um dos maiores desafios enfrentados pela Igreja durante este período. O gnosticismo, com sua ênfase no dualismo radical entre o espírito e a matéria, ofereceu um conjunto de ideias que contradiziam a visão cristã da criação e da encarnação.

Para os gnósticos, o espírito era bom e a matéria era inerentemente má. O problema central, portanto, residia na ideia de que a divindade poderia se envolver com a matéria sem comprometer sua pureza. A solução que os gnósticos propuseram foi a criação de um ser intermediário, o “demiurgo”, um deus menor que teria sido responsável pela criação do mundo, sem que o Deus supremo se contaminasse com a matéria.

Ário, influenciado por essas correntes filosóficas, tentou aplicar uma cosmovisão grega à teologia cristã, minimizando a divindade de Cristo. Para ele, o Filho de Deus, embora preeminente, não podia ser consubstancial com o Pai, pois tal concepção violaria os princípios filosóficos que excluíam a possibilidade de um ser eterno se envolver diretamente com a criação material. Esse raciocínio, com base no pensamento grego, levou Ário a desenvolver uma doutrina que subestimava a plena divindade de Cristo, um erro que Atanásio e outros teólogos contestaram com veemência.

A Conciliação entre Fé Cristã e Filosofia Grega

Com o advento do Concílio de Nicéia, a Igreja procurava uma síntese entre sua fé cristã e o mundo filosófico que a cercava. No entanto, o que deveria ser uma aplicação cuidadosa dos princípios cristãos à cultura helênica acabou se transformando em uma sobreposição da filosofia grega sobre a teologia cristã.

Ao tentar acomodar as doutrinas cristãs dentro do sistema filosófico grego, especialmente o modelo platônico, os defensores de Ário comprometeram a plena revelação bíblica da natureza de Cristo. A tentativa de acomodar a matéria e o espírito através da figura do “demiurgo” foi uma solução filosófica que carecia de uma base bíblica sólida e que contrapunha a mensagem central do cristianismo sobre a encarnação.

O problema central, portanto, não era apenas uma disputa sobre a relação entre o Pai e o Filho, mas sobre a própria compreensão da natureza de Deus. O cristianismo, que se afirmava como revelação divina, estava sendo reinterpretado à luz de uma filosofia humana que buscava solucionar problemas teológicos com base na razão humana, e não na revelação das Escrituras.

Essa crise de fé gerou a necessidade de uma definição clara e concisa da natureza de Cristo, algo que o Concílio de Nicéia viria a resolver, de forma decisiva, com a formulação do Credo Niceno. O concílio, ao afirmar que Cristo era “consubstancial ao Pai”, rejeitou a ideia de Ário e reafirmou a plena divindade de Cristo, fundamentada na Escritura e na tradição apostólica.

A convocação do Concílio

Enquanto o cristianismo apostólico defendia uma visão de Deus como mistério acessível, cuja revelação se dava por meio de uma comunhão profunda com o Criador – um conceito que era, em grande parte, herdado do judaísmo – o gnosticismo apresentava uma abordagem mais sofisticada e racionalizada desse mistério. Ao contrário da fé cristã, que era transmitida por revelação divina, o gnosticismo acreditava que o entendimento de Deus vinha da sabedoria secreta e da compreensão dos iniciados.

Para os gnósticos, aquilo que não era passível de compreensão racional não era digno de ser considerado uma verdadeira doutrina divina. Esse enfoque racionalista e elitista criou uma divisão preocupante no cristianismo, especialmente no Egito e em Antioquia, onde Ário tinha forte influência. O conflito gerado pelas doutrinas de Ário dividiu profundamente as comunidades cristãs, e a necessidade de um pronunciamento oficial se tornou cada vez mais urgente.

Diante dessa divisão, Alexandre, bispo de Alexandria, e seu discípulo Atanásio escreveram cartas a Roma solicitando um encontro para resolver a disputa teológica. A inquietação desses líderes não se limitava apenas à preservação da ortodoxia cristã, mas também à unidade da Igreja. Eusébio de Nicomédia, que se alinhava com os ensinos arianos, também reconheceu a necessidade de pôr fim ao conflito, mas não por motivos teológicos. Sua preocupação estava centrada na preservação da unidade e dos privilégios políticos que Constantino estava concedendo à Igreja.

É importante entender que Constantino, ao contrário do que muitos supõem, não tinha interesse direto em “impor” uma doutrina trinitária à Igreja. Como já mencionado anteriormente, se esse fosse o seu objetivo, ele não precisaria convocar um Concílio. Bastaria-lhe um decreto imperial para estabelecer a doutrina trinitária como norma. Contudo, o imperador não possuía conhecimento suficiente sobre a natureza da controvérsia teológica que envolvia a discussão sobre a Trindade e a natureza de Cristo31.

Isso fica claro em uma carta enviada por Constantino por meio do bispo Hósio de Córdova, na qual ele descreve a controvérsia como “uma questão sem proveito”.32 Sua indiferença em relação ao conteúdo teológico do debate evidencia que sua principal motivação estava no desejo de manter a paz e a unidade dentro do império, especialmente porque a divisão teológica ameaçava a coesão da Igreja.

Foi somente por pressão dos bispos que Constantino concordou em convocar o Concílio de Nicéia. No entanto, a posição dos defensores da ortodoxia trinitária era frágil. Alexandre e Atanásio eram politicamente mais fracos que os arianos, e chegou a ser quase um milagre que o Concílio de Nicéia tenha favorecido a visão trinitária.

Após o concílio, os arianos, apoiados por Eusébio de Nicomédia, travaram uma forte campanha para reverter a decisão, tentando restaurar Ário ao poder. Ário, de fato, conseguiu recuperar parte de sua influência e, protegido por Constantino, estava prestes a reassumir sua posição de bispo de Alexandria. No entanto, seu plano foi interrompido de forma inesperada, já que Ário faleceu repentinamente em 336 d.C., na véspera de sua investidura.

Com a morte de Ário, o projeto ariano de restaurar sua doutrina parecia ter sido frustrado, mas a tensão política não desapareceu. A situação política e religiosa se complicou ainda mais quando Constantino expressou o desejo de ser batizado por Eusébio de Nicomédia, que adotava uma postura antitrinitária. O imperador declarou publicamente sua intenção de ser batizado em um ritual que negava a plena divindade de Cristo, o que quase levou a Igreja a abandonar a ortodoxia trinitária.

No entanto, a morte de Constantino, em 22 de maio de 337 d.C., poucos dias depois de ser batizado, acabou por selar o destino da questão. A fé nicena não foi oficialmente abolida, embora a disputa sobre a natureza de Cristo e da Trindade tenha persistido por mais algum tempo.

O Credo de Nicéia e Suas Implicações

É crucial compreender que a grande discussão no Concílio de Nicéia não girava em torno da Trindade como um todo, mas da natureza de Cristo em relação ao Pai. O debate estava centrado na plena divindade de Cristo e na questão se Ele era ou não consubstancial ao Pai.

O Credo Niceno, que resultou do Concílio de Nicéia, focou especificamente na afirmação de que o Filho é “da substância do Pai” e “consubstancial com o Pai”, rejeitando a ideia de que Cristo seria uma criação subordinada ao Pai. Foi somente mais tarde, com o Credo de Atanásio, que a doutrina da Trindade foi elaborada de forma mais sistemática e clara, incluindo a afirmação de que o Espírito Santo também é uma pessoa da Trindade.

O Credo de Nicéia de 325 d.C. se apresenta da seguinte forma:

Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na Terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, e se encarnou e se fez homem e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir e no Espírito Santo.

Após o credo, o Concílio de Nicéia emitiu anátemas contra as heresias que negavam a divindade plena de Cristo, como o arianismo. As seguintes condenações foram feitas:

E a quantos dizem: “Ele era quando não era” e “antes de nascer, Ele não era” ou que “foi feito do não existente”; bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência” ou “feito” ou “mutável” ou “alterável”, a todos estes a Igreja católica e apostólica anatematiza.33

Portanto, o Concílio de Nicéia não resolveu de forma plena todas as questões sobre a Trindade, mas estabeleceu a divindade plena de Cristo como uma doutrina central e insubstituível do cristianismo. O impacto do concílio foi profundo, embora a disputa política e teológica tenha continuado nas décadas seguintes. O Credo Niceno, mais tarde complementado pelo Credo de Constantinopla em 381 d.C., estabeleceu as bases da doutrina trinitária, que se tornaria um pilar fundamental da fé cristã ortodoxa.

Conclusão

Como se observa, apesar das insatisfações de alguns grupos, prevaleceu no Concílio de Nicéia a decisão de elaborar um texto conciso e sem grandes explicações, de modo a agradar o máximo possível a todas as correntes teológicas envolvidas. Caso houvesse, de fato, uma abordagem política por trás do documento conciliar, esta se manifestou através da tentativa de neutralidade – buscando desviar a questão teológica para evitar divisões ainda mais profundas.

É importante lembrar que, no contexto histórico, Constantino acabara de derrotar Licínio na disputa pelo poder imperial, e sua principal prioridade era garantir a unidade do império. Uma cisma no cristianismo seria, portanto, algo indesejável e potencialmente desestabilizador naquele momento. Daí o tom aparentemente neutro sobre uma questão que, inicialmente, geraria imensas controvérsias.

Ao fim das deliberações, os arianos ficaram com a maior parte do desconforto, pois, apesar dos esforços para uma postura de neutralidade, o documento resultante acabou refletindo uma tradição apostólica antiga que afirmava a plena consubstancialidade de Cristo com o Pai. O mais curioso é que, embora a maioria dos arianos, incluindo Eusébio, tenha assinado o documento em concordância com seu conteúdo, Ário e dois de seus seguidores se recusaram a fazê-lo, indicando uma rejeição explícita ao que consideravam uma doutrina contrária aos seus ensinamentos.

O significado exato dessas assinaturas é difícil de precisar, mas elas revelam a falácia de que Constantino tenha sido o “criador” da doutrina trinitária como uma tentativa de integrar o politeísmo à Igreja. Pelo contrário, foi Ário, apoiado por Eusébio, que tentou introduzir uma doutrina politeísta no cristianismo, ao apresentar Cristo como um “segundo” deus, inferior ao Pai, mas ainda assim divino, o que se assemelha ao conceito do “demiurgo” encontrado no gnosticismo alexandrino.

Em Nicéia, portanto, a Igreja não procurou penetrar no mistério absoluto de Deus ou tentar descrevê-lo de maneira racional, como fez Ário, influenciado pela filosofia grega e pela ideia de transcendência. Essa foi a verdadeira natureza do debate teológico que ocorreu no Concílio de Nicéia, e não se pode considerá-lo como a origem de uma teologia trinitária completamente desenvolvida.

Ao invés disso, o concílio deu um passo significativo ao reafirmar a consubstancialidade de Cristo com o Pai, estabelecendo um marco importante na definição da fé cristã, sem, no entanto, elaborar uma teologia trinitária completa. O resultado foi, por assim dizer, uma formulação que buscava manter a unidade política e eclesiástica, sem entrar profundamente nas complexidades teológicas que viriam a ser discutidas mais tarde, como ficou claro nas décadas subsequentes, com o desenvolvimento do Credo de Atanásio e a posterior formulação do Credo Niceno-Constantinopolitano.


Referências:

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  21. ATENÁGORAS. Súplica pelos Cristãos. XI.
  22. ATENÁGORAS. Súplica pelos Cristãos. XXIII.
  23. IRENEU. Contra Heresias. V, XI, 2.
  24. IRENEU. Contra Heresias. IV, XX, 2 e 3.
  25. HIPÓLITO. Fragmentos de Comentários. 10 (ANF, vol. V, 174).
  26. WALKER, W. História da Igreja Cristã. Rio de Janeiro: JUERP/ASTE, 1980. p. 105.
  27. CIPRIANO. Epístolas. LXXII, 5.
  28. ALAND, Bárbara et al. (eds.). The Greek New Testament, Fourth Revised Edition. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft /United Bible Societies, 2001. p. 819.
  29. CIPRIANO. Tratados. I, 6.
  30. WHITE, Ellen G. O Grande Conflito. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1996. p. 56.
  31. LOHSE, Bernard. A Fé Cristã Através dos Tempos. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1981. p. 57.
  32. EUSÉBIO DE CESARÉIA. Vida de Constantino. II, 64-72.
  33. DEZINGER, Henrique; BANNWART, Clemente. (eds.). Enchiridion Symbolorum – definitionum et declarationum de rebus fidei et morum. Friburgo: Herder and Co., 1922. p. 29.

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Amós Bailiot

Sou um estudante de História na Universidade Estácio de Sá e um entusiasta em Teologia. Acredito que o conhecimento é valioso apenas quando compartilhado. É por isso que estou aqui, disposto a compartilhar minhas reflexões teológicas. Junte-se a mim nessa jornada!

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Amós Bailiot

Graduando em História pela Universidade Estácio de Sá e estudioso de Teologia, defende a premissa de que o conhecimento se torna verdadeiramente valioso quando compartilhado. Junte-se a mim nessa jornada!

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