
Introdução
Uma das alegações mais recorrentes no campo da apologética católica é a de que a Igreja Católica “criou” ou “deu” a Bíblia ao mundo. Defensores desse ponto de vista, como Jimmy Akin em seu livro A Bíblia é um Livro Católico, afirmam que os cristãos protestantes dependem da Igreja Católica para possuir a Bíblia como a conhecemos hoje. Esse argumento busca reforçar a autoridade da Igreja Católica sobre as Escrituras e, ao mesmo tempo, sublinhar a tradição como uma fonte igualmente válida de autoridade.
No entanto, essa afirmação levanta questões importantes. Primeiro, qual era o papel da Igreja primitiva na preservação das Escrituras? Segundo, em que medida a Igreja Católica Apostólica Romana, como a conhecemos hoje, pode realmente reivindicar esse feito?
Neste artigo, exploraremos profundamente as questões históricas e teológicas que cercam essa alegação, demonstrando que a ideia de que a Igreja Católica “criou” a Bíblia é historicamente falha e teologicamente insustentável.
A Falácia Histórica de Atribuir a Criação da Bíblia à Igreja Católica
A ideia de que a Igreja Católica Romana “criou” a Bíblia é uma afirmação historicamente incorreta. Para entender isso, é necessário primeiramente definir o que se entende por “Igreja Católica” nos primeiros séculos do cristianismo. Nos primeiros três séculos, o termo “católica” (do grego katholikos, que significa “universal”) referia-se à igreja em seu sentido universal — ou seja, a comunidade de crentes espalhados por todo o mundo —, e não a uma instituição centralizada como conhecemos hoje.
Foi apenas com o desenvolvimento histórico e teológico ao longo dos séculos que a Igreja de Roma começou a se consolidar como uma autoridade hierárquica distinta. Portanto, alegar que a “Igreja Católica” dos primeiros séculos é a mesma que a Igreja Católica Romana posterior é cometer um erro anacrônico.
O que havia era uma igreja primitiva que, longe de ter uma estrutura organizada sob a liderança exclusiva de Roma, reconhecia a autoridade das Escrituras como a Palavra inspirada de Deus e guiava-se pelos ensinamentos dos apóstolos.
Assim, o processo de reconhecimento do cânon bíblico foi algo que ocorreu dentro da comunidade cristã como um todo, e não foi fruto da ação de uma instituição centralizada que “criou” ou “autorizou” as Escrituras. A igreja primitiva não “escreveu” as Escrituras; ela as recebeu e as reconheceu como divinamente inspiradas.
O Cânon Bíblico: Recebido, Não Criado
Uma questão chave nesse debate é o que significa “criar” o cânon. Defensores católicos afirmam que a Igreja Católica definiu quais livros fariam parte da Bíblia, e, sem esse ato, não teríamos o cânon. No entanto, essa visão distorce o processo histórico. A formação do cânon do Novo Testamento foi um processo orgânico e natural, no qual a igreja reconheceu os livros que já eram aceitos e usados pelos cristãos em todo o mundo.
O teólogo reformado B.B. Warfield argumenta que o Novo Testamento foi essencialmente completo quando o último apóstolo, João, escreveu o livro de Apocalipse por volta de 98 d.C. A partir desse ponto, os livros canônicos circularam entre as igrejas, que os reconheciam como inspirados. O reconhecimento formal do cânon nos concílios de Hipona (393 d.C.) e Cartago (397 d.C.) não foi um ato de “criação”, mas de confirmação do que já era amplamente aceito.
O teólogo Michael Kruger, em seu livro Canon Revisited, defende a doutrina do cânon auto-autenticável. Ele argumenta que os livros do Novo Testamento possuem qualidades intrínsecas, como autoridade, eficácia espiritual e harmonia doutrinária, que os tornam auto-evidentemente inspirados. Esses livros foram reconhecidos pelos primeiros cristãos devido à sua origem apostólica e à presença do Espírito Santo em suas palavras. Assim, o cânon foi formado pela sua própria natureza divina, e não por decretos eclesiásticos.
A Função da Igreja no Reconhecimento do Cânon
É essencial compreender que a função da Igreja primitiva não foi “criar” o cânon, mas reconhecê-lo. A autoridade dos livros bíblicos não foi conferida por um concílio ou instituição, mas pelo próprio Deus, que inspirou os autores a escreverem. O apóstolo Pedro, em 2 Pedro 3:15-16, já reconhecia os escritos de Paulo como Escritura, indicando que os textos do Novo Testamento eram aceitos como divinamente inspirados mesmo durante o período apostólico.
A Igreja, portanto, desempenhou o papel de depositária e transmissora das Escrituras, não sua criadora. A ideia de que a Igreja Católica teria o poder de definir o que é ou não inspirado implica que a autoridade da Bíblia dependeria de uma instituição humana, o que é teologicamente inaceitável.
A Bíblia e a Autoridade Final
Outro aspecto fundamental que precisa ser abordado é a questão da autoridade. A Igreja Católica Romana sustenta que a tradição e o magistério da Igreja possuem autoridade igual à das Escrituras. No entanto, essa visão contraria o princípio bíblico de que a Palavra de Deus é a autoridade final. 2 Timóteo 3:16 afirma que “toda a Escritura é inspirada por Deus” e é “útil para ensinar, repreender, corrigir e instruir na justiça”. Isso significa que as Escrituras são suficientes para guiar a fé e a prática dos cristãos.
A tradição, embora possa ter um papel valioso no contexto histórico e teológico, nunca pode sobrepujar ou contradizer as Escrituras. O próprio Jesus, em Mateus 15:3-9, condenou os fariseus por seguirem tradições que invalidavam os mandamentos de Deus. Ele disse: “Por que transgredis o mandamento de Deus por causa da vossa tradição?” E, mais adiante: “Em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos de homens”. Jesus deixou claro que qualquer tradição que se oponha à Palavra de Deus é inválida.
Se a tradição da Igreja é colocada acima ou ao lado da Bíblia em termos de autoridade, abre-se a porta para a possibilidade de que os ensinamentos humanos possam distorcer ou alterar a verdade revelada. Isso é o que historicamente ocorreu na Igreja Católica Romana, com a introdução de doutrinas como a Infalibilidade Papal, que não têm base nas Escrituras e são fruto de desenvolvimentos doutrinários tardios.
A Imutabilidade de Deus e Sua Palavra
Outro ponto crucial é o caráter imutável de Deus e de Sua Palavra. Malaquias 3:6 diz: “Eu, o Senhor, não mudo”, e Tiago 1:17 afirma que “em Deus não há mudança nem sombra de variação”. Se Deus é imutável, Sua revelação também o é.
Isso significa que a Palavra de Deus, tal como revelada nas Escrituras, é permanente e suficiente. A ideia de que a tradição poderia modificar ou reinterpretar as Escrituras contradiz a própria natureza de Deus. Se isso fosse verdade, estaríamos sugerindo que Deus muda de opinião conforme as conveniências humanas, o que é inaceitável teologicamente.
Portanto, qualquer tradição que pretenda adicionar, alterar ou reinterpretar a Bíblia com autoridade divina deve ser rejeitada, pois compromete a imutabilidade e suficiência das Escrituras.
Conclusão
A alegação de que a Igreja Católica Romana “criou” a Bíblia é um mito que não se sustenta à luz dos fatos históricos e teológicos. A Bíblia foi dada por Deus, e a igreja primitiva, guiada pelo Espírito Santo, reconheceu os livros inspirados como a Palavra de Deus.
A autoridade da Bíblia não depende de uma instituição humana, mas do próprio Deus, que inspirou seus autores. Além disso, qualquer tradição ou ensino que se sobreponha às Escrituras deve ser rejeitado, pois somente a Bíblia é a Palavra de Deus e a autoridade final para a fé e a prática cristã.
Referências:
- Akin, Jimmy. The Bible Is a Catholic Book. San Diego, CA: Catholic Answers Press, 2019.
- Warfield, B. B. The Inspiration and Authority of the Bible. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing, 1948.
- Kruger, Michael. Canon Revisited: Establishing the Origins and Authority of the New Testament Books. Wheaton, IL: Crossway, 2012.
- Bavinck, Herman. Reformed Dogmatics: Prolegomena. Baker Academic, 2003.