
Introdução
A proposta deste artigo é conduzir uma análise crítica sobre a alegação frequentemente repetida, mas raramente examinada, de que a Bíblia ensina ou sustenta uma cosmologia terraplanista. A abordagem aqui adotada não se limita à superfície textual nem se apoia em interpretações anacrônicas; pelo contrário, ela se constrói a partir de quatro pilares metodológicos interligados:
- Primeiramente, será realizada uma análise lexicográfica do texto hebraico, conforme as edições críticas da Bíblia Hebraica Stuttgartensia (BHS) e Biblia Hebraica Kittel (BHK). O objetivo é entender o uso original das palavras no seu contexto semântico e sintático.
- Em seguida, será feita uma comparação interlinear com traduções antigas, como a Septuaginta (LXX), de tradição grega, e a Vulgata Latina, além de versões modernas como a Jewish Publication Society (JPS) e a New Revised Standard Version (NRSV), que atualizam terminologias segundo descobertas filológicas e arqueológicas recentes.
- Terceiro, abordaremos a estrutura literária dos textos sagrados, observando os diferentes gêneros bíblicos (poesia, profecia, narrativa, apocalipse) para interpretar corretamente os usos simbólicos e estilísticos.
- Por fim, será considerado o ambiente cultural do antigo Oriente Próximo, para entender como as cosmovisões fenícia, babilônica e egípcia influenciaram as metáforas presentes nas Escrituras.
A meta é demonstrar que a Bíblia não sustenta, literal ou metaforicamente, uma concepção de Terra plana. O que encontramos, ao contrário, é uma rica gama de imagens literárias, voltadas à exaltação da soberania divina e não à formulação de modelos físicos do universo.
1. Panorama histórico da cosmologia antiga
Para compreender qualquer menção bíblica à estrutura da Terra ou do céu, é essencial inserir tais textos no contexto intelectual e cosmológico de seu tempo. O mundo antigo não produziu ciência como hoje a conhecemos. Cosmologias antigas, desde a Mesopotâmia até o Egito, eram expressões religiosas e poéticas sobre a ordem do cosmos. As imagens eram carregadas de simbolismo e serviam à teologia, não à cartografia.
A seguir, observamos um breve quadro com as principais visões cosmológicas da antiguidade:
Civilização | Modelo Cosmológico | Século de Referência |
---|---|---|
Babilônia | Céu como abóbada com águas superiores (Apsû) | XVIII–VI a.C. |
Egito Antigo | Disco solar navegando sobre uma abóbada celeste de pedra | XXVI–XX a.C. |
Mesopotâmia | Terra como disco flutuante sobre águas caóticas | XX–X a.C. |
Israel Antigo | Mistura de metáforas regionais com foco na soberania de Deus | XIII–I a.C. |
O antigo Israel, embora influenciado pelas culturas vizinhas, não copiou suas cosmovisões. Em vez disso, utilizou imagens conhecidas para fins teológicos, sobretudo para comunicar a soberania de YHWH sobre o caos e sobre os deuses estrangeiros. Não há intenção, nos textos bíblicos, de descrever com precisão científica a forma ou estrutura da Terra. Termos como “fundamentos da terra”, “colunas do céu” ou “águas acima do firmamento” são expressões poéticas comuns a todo o Oriente Próximo, usadas para articular o poder divino sobre a ordem cósmica.
Assim, afirmar que a Bíblia descreve literalmente uma Terra plana é ignorar tanto o contexto cultural como a intencionalidade literária dos seus autores. As Escrituras falam mais do “porquê” da criação do que do “como” tudo foi criado.
2. Análise léxica dos termos-chave
A análise dos vocábulos hebraicos frequentemente usados para sustentar argumentos terraplanistas é fundamental para desmontar essas alegações. Os principais termos são: אֶרֶץ (erets), חוּג (chûg) e רָקִיעַ (raqîaʿ). Cada um possui um campo semântico amplo e deve ser compreendido dentro de seu contexto específico.
2.1 אֶרֶץ (erets)
O termo “erets” ocorre mais de 2.500 vezes na Bíblia Hebraica. Sua raiz semântica é extremamente abrangente, podendo designar desde o solo sob os pés até o conjunto das nações.
- Sentido primário: solo, terra cultivável.
- Sentido secundário: país, território, região.
- Sentido terciário: “mundo habitado” ou “terra” no sentido universal.
Exemplo:
- Gênesis 1:1: בְּרֵאשִׁית בָּרָא אֱלֹהִים אֵת הַשָּׁמַיִם וְאֵת הָאָרֶץ
Tradução: “No princípio, criou Deus os céus e a terra.”
Neste versículo, “erets” é traduzido como “terra” no sentido de mundo habitado ou planeta. Contudo, isso não implica uma forma geográfica específica. O objetivo do verso é informar que Deus criou a Terra, não dar uma descrição topográfica.
- Isaías 11:12: מִקְּצֵה אֶרֶץ
Tradução: “dos confins da terra”
15Aqui, o termo é usado idiomaticamente, referindo-se aos limites do mundo conhecido pelos antigos israelitas. Não há indicação de que o mundo possua bordas físicas. Portanto, “erets” não sustenta, por si só, nenhuma teoria de forma da Terra. O termo é plural em sentidos e metafórico em muitos contextos.
2.2 חוּג (chûg)
Este termo aparece em apenas quatro passagens no Antigo Testamento. Sua tradução mais comum é “círculo”, mas também pode ser entendida como “circuito” ou “linha do horizonte”.
Exemplos:
- Isaías 40:22: הוּא יֹשֵׁב עַל חוּג הָאָרֶץ
Tradução: “Ele está assentado sobre o círculo da terra”
Essa passagem é frequentemente usada por defensores da Terra plana ou esférica. Contudo, o termo “chûg” refere-se provavelmente à linha do horizonte visível — uma percepção circular do observador, não uma geometria literal da Terra.
- Jó 26:10: הֶחֱזִיק חוּגוֹ עַל־פְּנֵי מָיִם
Tradução: “Traçou um limite circular sobre a superfície das águas”
Mais uma vez, temos o uso poético de “chûg”, indicando a separação visual entre o céu e o mar. É uma metáfora perceptiva, não uma planta arquitetônica do planeta. Logo, “chûg” não é sinônimo de esfericidade ou planicidade. Trata-se de um termo simbólico para expressar ordem e delimitação.
2.3 רָקִיעַ (raqîaʿ)
A palavra “raqîaʿ” é usada 17 vezes e tem sido alvo de diversas interpretações. As traduções variam entre “expansão”, “firmamento”, “abóbada celeste” e até “domo”.
Exemplos:
- Gênesis 1:6–8: וַיֹּאמֶר אֱלֹהִים… רָקִיעַ מַבְדִּיל
Tradução: “Haja um firmamento no meio das águas, e haja separação entre águas e águas.”
A Septuaginta traduziu “raqîaʿ” como “stereōma”, sugerindo uma estrutura sólida, provavelmente por influência da cosmologia grega. A Vulgata manteve essa ideia ao usar “firmamentum”.
- Jó 37:18: “Estendeste com Ele os céus, firmes como espelho fundido?”
Aqui temos uma metáfora poética que compara o céu a um metal moldado — imagem comum na literatura hebraica para comunicar majestade e imutabilidade, e não para descrever um “teto” sólido. Assim, o termo “raqîa” expressa uma separação funcional entre domínios da criação, e sua interpretação como cúpula rígida reflete mais as traduções antigas do que o hebraico original.
3. Comparação interlinear de traduções
Uma das maneiras mais eficazes de rastrear como os termos hebraicos foram compreendidos (ou mal compreendidos) ao longo dos séculos é comparar as principais traduções bíblicas em diferentes idiomas e períodos. Essa análise interlinear ajuda a identificar como metáforas hebraicas foram, muitas vezes, cristalizadas em interpretações cosmológicas equivocadas — especialmente nos períodos helenístico e medieval.
Hebraico massorético (BHS) – texto base
O Texto Massorético é a base do Antigo Testamento nas traduções judaicas e cristãs. Ele preserva o hebraico clássico, com vocalizações e anotações feitas por estudiosos massoretas entre os séculos VI e X d.C. Sua importância é fundamental porque é o mais próximo do que os autores bíblicos originalmente escreveram.
Septuaginta (LXX)
A Septuaginta foi produzida no Egito, em grego koiné, entre os séculos III e II a.C., para uso dos judeus helenizados. Ao traduzir “raqîaʿ” como “stereōma” (estrutura sólida), ela introduziu uma concepção de céu rígido influenciada pela física aristotélica e pelas cosmologias platônicas.
Esse termo grego sugeria uma abóbada sólida, não por fidelidade ao hebraico original, mas por adaptação cultural ao imaginário grego — o que acabou influenciando profundamente a leitura cristã ocidental da criação.
Vulgata
A Vulgata, tradução latina feita por Jerônimo no século IV d.C., manteve a ideia de firmeza ao usar “firmamentum”. Embora esse termo também pudesse significar “suporte” ou “estrutura firme”, a tradição o associou diretamente a uma cúpula rígida celeste — ideia que se perpetuou na teologia medieval.
JPS (Jewish Publication Society) – Edição Judaica Moderna
A JPS de 1917 e suas edições revisadas preferem uma abordagem mais técnica, usando “firmament” ou “expanse” conforme o contexto. Os tradutores modernos, atentos à arqueologia e linguística semítica, rejeitam a leitura literal de um céu sólido, optando por termos que preservem o caráter funcional e poético do “raqîaʿ”.
NRSV (New Revised Standard Version)
A NRSV (1989) representa um avanço hermenêutico. Ela usa termos como “dome” (cúpula) ou “expanse” (expansão) de forma contextualizada, com notas explicativas. Sua preocupação é evitar o anacronismo científico sem abandonar a tradição textual.
Quadro comparativo:
Palavra Hebraica | BHS (Hebraico) | LXX (Grego) | Vulgata (Latim) | JPS (Inglês) | NRSV (Inglês) |
---|---|---|---|---|---|
רָקִיעַ (raqîaʿ) | firmamento | στερέωμα | firmamentum | firmament/expanse | dome/expanse |
חוּג (chûg) | círculo | κύκλος (krugos) | circulus | círculo | circuit |
אֶרֶץ (erets) | terra/mundo | γῆ (gē) | terra | earth/land | earth/land |
Portanto, a evolução nas traduções reflete tanto avanços na crítica textual quanto mudanças culturais. As versões antigas não pretendiam fornecer ciência astronômica, mas traduzir símbolos para seus respectivos públicos. A literalização moderna de termos antigos é, portanto, hermeneuticamente falha.
4. Gêneros literários e contexto
Um dos maiores erros na leitura de textos bíblicos é desconsiderar o gênero literário de cada passagem. A Bíblia não é homogênea: ela contém poesia, narrativa histórica, literatura sapiencial, profecia clássica e profecia apocalíptica, entre outros estilos. Cada um desses gêneros utiliza a linguagem de maneira distinta — e ignorar isso pode levar a interpretações equivocadas, como tomar imagens poéticas ou simbólicas como afirmações literais.
Poesia
A poesia hebraica é marcada por paralelismo (sinônimo, antitético ou sintético), uso abundante de metáforas, hipérboles e ritmo interno.
- Exemplos: Salmos, Jó, Isaías (também profético e histórico), Cantares de Salomão.
Uso dos termos: “As colunas da Terra” (Salmos 75:3), “o céu como tendas estendidas” (Isaías 40:22) — são imagens poéticas que visam evocar compreensão e uma visão da grandiosidade e soberania divina, não descrever uma literalidade física.
Profecia
A profecia bíblica pode ser classificada em dois gêneros distintos: profecia clássica e profecia apocalíptica.
🔹 Profecia Clássica
A profecia clássica concentra-se em mensagens contextuais, contemporâneas ao tempo do profeta, com ênfase em advertências, juízo e esperança, geralmente dirigidas ao povo de Israel ou a nações específicas. É frequentemente condicional: suas promessas ou advertências dependem da resposta humana (arrependimento ou rebelião). Usa linguagem simbólica, mas com aplicações mais imediatas, frequentemente ligadas à justiça social, idolatria, exílio e restauração.
- Exemplos: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Amós, Oséias.
Uso dos termos: Expressões como “as estrelas cairão do céu” ou “o céu se enrolará como pergaminho” (Isaías 34:4) são metáforas de grandes catástrofes sociais ou espirituais, e não descrições astronômicas.
🔹 Profecia Apocalíptica
A profecia apocalíptica é um gênero profético, repleto de símbolos e de caráter escatológico, voltado à revelação do futuro — do curso da história humana até o seu fim. É incondicional: os eventos nela descritos não dependem da resposta humana, mas seguem um plano divino soberano.
Uso dos termos: Frases como “anjos nos quatro cantos da Terra” (Apocalipse 7:1) são símbolos de totalidade geográfica (norte, sul, leste e oeste), não afirmativas sobre a geometria da Terra. A Bíblia não ensina que o planeta é quadrado (ou plano).
Exemplos: Daniel 7–12; Apocalipse de João.
Narrativa
A narrativa bíblica relata eventos históricos, genealogias e leis, mas não com o rigor científico moderno, como muitos imaginam.
- Exemplos: Gênesis, Êxodo, Levítico, Juízes, Crônicas.
Uso dos termos: “Deus separou as águas”, “firmamento no meio das águas” — essas expressões articulam a soberania de Deus sobre a estrutura da realidade, não descrevem uma engenharia do cosmos.
5. Confronto com a teoria da Terra plana
As tentativas modernas de associar a Bíblia à teoria da Terra plana resultam, em grande parte, de uma hermenêutica rasa e descontextualizada. Elas se fundamentam em pelo menos dois erros que comprometem qualquer leitura séria das Escrituras:
- Erro hermenêutico (falácia do alcance semântico): Um dos principais equívocos é interpretar expressões como “os quatro cantos da Terra” (Isaías 11:12) ou “as colunas da Terra” (Jó 9:6) como descrições literais da estrutura do planeta. Esses versos são, claramente, construções poéticas e idiomáticas comuns à linguagem da época, usadas para representar totalidade — não geografia literal.
- Ignorância do contexto cultural: As imagens bíblicas sobre a estrutura do cosmos fazem eco ao imaginário do antigo Oriente Próximo, que incluía ideias como o firmamento, águas superiores e pilares celestes. No entanto, os autores hebreus utilizam essas imagens com liberdade simbólica, reformulando-as para comunicar a soberania e singularidade do Deus de Israel — e não para propor uma cosmografia objetiva.
Além disso, a influência das traduções antigas como a Septuaginta (que traduziu raqîaʿ como stereōma) e a Vulgata (que manteve firmamentum) contribuiu para o fortalecimento de uma interpretação medieval de céu rígido. Mas isso reflete mais os paradigmas cosmológicos greco-romanos do que qualquer doutrina bíblica intencional. Versões modernas, mais sensíveis ao contexto original, têm corrigido essas distorções.
E aqui encontramos uma ironia reveladora: mesmo que alguém insista — forçando o texto — em encontrar na Bíblia uma descrição objetiva do formato da Terra, acabaria se frustrando. Isso porque as imagens que mais se aproximam de uma caracterização física do planeta, como em Isaías 40:22 (“assentado sobre o círculo da terra”) ou Jó 26:7 (“suspende a terra sobre o nada”), não favorecem o terraplanismo — mas sim sugerem algo próximo de uma Terra esférica e suspensa no espaço.
O termo chûg em Isaías, embora não signifique “esfera”, indica uma percepção circular — algo condizente com o horizonte visual e com a curvatura da Terra observável a olho nu. E a ideia de um planeta “pendurado sobre o nada”, no livro de Jó, é surpreendentemente mais compatível com o entendimento moderno do espaço sideral do que com os modelos cosmológicos antigos baseados em pilares ou fundações.
Assim, aquele que se lança à busca de uma “prova bíblica” da Terra plana acaba, ironicamente, encontrando uma Bíblia que — mesmo sem pretensão científica — é muito mais alinhada a uma Terra redonda do que a uma plana. E essa constatação evidencia não só a fragilidade das leituras terraplanistas, mas também o profundo valor simbólico e teológico das Escrituras.
Em suma, a teoria da Terra plana baseada na Bíblia fracassa em todos os níveis: linguístico, literário, histórico e lógico. Ao se desconectar do contexto original e tentar impor um modelo literalista, ela não apenas distorce o texto, como o transforma em algo que ele nunca pretendeu ser: um atlas astronômico. A Bíblia é e continuará sendo a Palavra de Deus para nós, não um livro de astronomia.
6. Conclusão
Depois de uma análise que considerou textos originais em hebraico, comparações interlineares com traduções antigas e modernas, o ambiente cultural do Oriente Próximo e os gêneros literários das Escrituras, a conclusão torna-se clara: não há, em nenhum momento, uma sustentação bíblica genuína para a teoria da Terra plana.
Os vocábulos hebraicos como אֶרֶץ (erets), חוּג (chûg) e רָקִיעַ (raqîaʿ) não descrevem uma topografia literal, mas sim conceitos poéticos, teológicos e funcionais. São palavras fluídas, moldadas pelo gênero literário e pelo contexto cultural. A Terra não é descrita como um disco, um globo, ou qualquer outra forma física com exatidão. Ela é o “domínio da criação”, o palco da história da salvação.
Em suma, a Escritura Sagrada não tem a pretensão de ser um tratado de geografia ou astronomia. Seu propósito não é explicar os mecanismos físicos do cosmos, mas revelar Deus e Seu caráter à humanidade.
Leia também:
Gogue e Magogue: a profecia está se cumprindo com Israel e Irã?
O papa americano e o papel dos EUA nas profecias
O Sábado foi transgredido por Jesus? Veja o que a Bíblia diz