
Introdução
Explorando os apócrifos na Bíblia católica, é comum notar a presença de sete livros apócrifos adicionais em comparação às Bíblias protestantes.
Os apócrifos são a designação utilizada pelos protestantes, enquanto entre os católicos são conhecidos como “deuterocanônicos”. Apesar do debate em torno da inspiração dessas obras, é crucial salientar o seu valor histórico.
Os apócrifos podem proporcionar uma compreensão mais profunda da sociedade e cultura da época em que foram escritos ao estudá-los.
Por exemplo, o livro de Tobias oferece insights sobre a vida judaica e as relações familiares daquele período. Já o livro de Sabedoria representa uma fonte valiosa para compreender a interseção entre a filosofia grega e o judaísmo helenístico.
Entretanto, a questão da inspiração dos livros apócrifos permanece um tema debatido entre estudiosos. Algumas das principais razões para questionar a inspiração desses livros, como veremos ao longo deste artigo, incluem a ausência de citações diretas no Novo Testamento e possíveis contradições com outros textos bíblicos.
Não obstante essas questões, os livros apócrifos constituem parte integral da Bíblia Católica, oferecendo uma perspectiva valiosa para a compreensão da história e cultura da época em que foram escritos.
Compreender o significado dessas obras e sua relação com a tradição judaico-cristã representa um passo fundamental no estudo da Bíblia e na compreensão da história do cristianismo.
Livros apócrifos: significado
Inicialmente, o termo “apócrifo” em grego carrega consigo o significado de “aquilo que está escondido”, “oculto” ou que é “difícil de entender”. De maneira análoga, esses livros são rotulados como tal, especialmente devido à sua autoria “oculta” ou “desconhecida”.
Ao examinar, por exemplo, o livro de Tobias, é relevante observar que estudiosos evidenciaram que Tobias não foi o verdadeiro autor. É evidente que um escritor desconhecido optou por usar esse nome, conferindo assim “substância” à sua obra, prática comum naquela época.
Entretanto, foi Martinho Lutero, no século 16, quem classificou esses livros como “apócrifos”, uma vez que eles abraçavam ensinamentos defendidos pela Igreja Católica. É claro que esses ensinamentos não encontram espaço na Bíblia Canônica (continue a leitura para descobrir quais são esses ensinamentos).
Por outro lado, a expressão “deuterocanônico”, adotada pelos fiéis católicos para se referirem a esses livros, carrega o significado de “segundo cânone”. Segundo a visão católica, os “deuterocanônicos” foram canonizados em um momento posterior pela Igreja, mas não receberam a canonização dos profetas bíblicos.
Como protestante, minha preferência recai sobre a primeira definição: “apócrifos”. Por quê? Existem razões históricas e teológicas para tal escolha, as quais serão exploradas a seguir.
Razão Histórica
Em primeiro lugar, devemos destacar que os livros apócrifos têm sua origem nos últimos dois séculos a.C. Escritos em grego, essas obras encontraram ampla utilização entre os judeus da diáspora no Egito, onde o idioma grego predominava.
No 4º século, o Papa Dâmaso convocou São Jerônimo para revisar as Bíblias então existentes. Essa revisão culminou na conhecida tradução chamada Vulgata Latina, que se tornou a versão oficial da Bíblia da Igreja Católica por muitos séculos.
Por razões que permanecem um tanto obscuras, Jerônimo incluiu os livros apócrifos em sua tradução, o que os mantém presentes nas Bíblias Católicas até os dias atuais.
Entretanto, é interessante notar que, mesmo ao introduzir os livros apócrifos na Vulgata, Jerônimo não os reconheceu como canônicos. Em sua perspectiva, tais obras não poderiam ser lidas da mesma forma que os livros bíblicos inspirados, tampouco utilizadas como fundamento doutrinário.
Essa visão foi compartilhada por outros autores reconhecidos pela Igreja Católica, como destaca Rodrigo Silva em sua obra “A Bíblia de Álef a Ômega”1. Entre esses autores, destacam-se:
- João Damasceno
- Papa Gregório Magno
- Walafrid
- Nicolau de Lyra
- Tostado
Acredito que nossos irmãos católicos devem refletir sobre este aspecto e usá-lo como um argumento histórico para questionar os deuterocanônicos. Estes não constituem um “segundo cânon”.
Portanto, a ausência de consenso deve levá-los a adotar uma postura equilibrada, considerando esses escritos como fontes históricas e instrutivas, mas não canônicas.
Eles não foram impregnados pela inspiração do Espírito Santo, como as demais Escrituras (Romanos 15:4; I Timóteo 3:15-17; II Pedro 1:19-21).
Ademais, em 1540, o reformador Andreas Carltadt, fundamentado no Prologus de Jerônimo, proclamou de maneira dogmática que esses livros deveriam ser excluídos das Bíblias cristãs em sua obra “De canonics Scripturis Libellus”.
O Concílio de Trento em 1546
Semelhantemente, os protestantes argumentavam que doutrinas católicas, como a intercessão dos santos, a oração pelos mortos e o purgatório, não tinham base bíblica.
Naturalmente, a Igreja Católica, imersa na época da Contrarreforma, respondeu a essa assertiva de Andreas, oferecendo uma réplica também à crítica protestante de que não havia respaldo bíblico para tais doutrinas católicas.
A resposta foi articulada no Concílio de Trento, realizado em 8 de abril de 1546, onde se oficializou a inclusão desses sete livros nas Bíblias aprovadas pelo Papa. Como observado anteriormente, os “apócrifos” sustentam algumas doutrinas católicas, mas tais ensinamentos não encontram respaldo nos livros bíblicos inspirados.
Outra doutrina respaldada pelos “apócrifos” é a doação de esmolas para purificar pecados (Tobias 12:8-9; Eclesiástico 3:30), algo que contradiz abertamente a doutrina da justificação exclusivamente pela fé em Jesus Cristo (Romanos 5:1; Efésios 2:8-10; 1Jo 1:7-9).
Resumindo, este é o argumento histórico para rejeitar os apócrifos como inspirados: eles foram acrescentados tardiamente à Bíblia, em 1546. Além disso, o próprio Jerônimo e autoridades católicas ao longo da história os rejeitaram como inspirados.
O cardeal Caetano, um dos mais destacados opositores de Lutero, foi encarregado pela Igreja de refutar os ensinamentos do protestantismo e escreveu um comentário dedicado ao Papa, expressando sua opinião de que os apócrifos não eram inspirados, muito menos canônicos. Por isso, não foram incluídos em seu comentário do Antigo Testamento.
A seguir, avancemos para a razão teológica para rejeitar os livros apócrifos como inspirados.
Razão Teológica
Agora, apresentarei uma lista comparativa entre os livros apócrifos e os livros bíblicos inspirados. Com esta relação, é possível analisar algumas das doutrinas apresentadas em ambos os conjuntos de obras, evidenciando a falta de harmonia doutrinária entre eles.
Tal disparidade reforça a necessidade de ponderar minuciosamente sobre o que é verdadeiramente inspirado pelo Espírito Santo e o que não é, evitando assim a confusão e a distorção da mensagem salvífica.
Contraste entre alguns textos dos livros apócrifos com a Bíblia Sagrada
Livro Apócrifo | Heresia ou Lenda | Posição Bíblica |
Tobias 5:4-6 | Anjos bons mentem | Jo 8:44 |
Tobias 6:4-8 | Anjo ensina feitiçaria | Dt 18:10-12; Êx 22:18; Mc 9:17-29 |
Tobias 12:8-9; Eclesiástico 3:30 | Dar esmolas purifica dos pecados | 1Pe 1:18-19; 1Jo 1:7-9 |
Judite 8:4-6 | Mulher jejuou exageradamente por mais de 3 anos, mais que o Divino-humano Jesus | Mateus 4:2 |
Judite 9:2 | Simeão e Levi mataram os habitantes de Siquém por ordem de Deus | Gn 34:30; 49:5-7 |
2 Macabeus 12:43-46 | Oração pelos mortos | Is 38:18-19 (na versão Almeida) |
Sabedoria 3:4-5 | Purgatório | Sl 6:5; Ec 9:5, 6, 10 |
Eclesiástico 3:3 | Perdão dos pecados pela obediência aos pais (salvação pelas obras) | Êx 20:12; Rm 5:1; 1Jo 1:9 |
Eclesiástico 12:6 | Deus “detesta” os pecadores | Mt 5:44-48; Ez 18:23, 32; Pv 25:21; Rm 12:20 |
Se foi Deus quem inspirou cada autor da Bíblia, seria razoável esperar que todos os livros estivessem em harmonia quanto às suas doutrinas e ensinamentos, não é mesmo?
Entretanto, ao compararmos os “apócrifos” com a Bíblia, torna-se evidente que tais escritos não estão alinhados com o ensino inspirado dos profetas.
Como ilustrado na tabela acima, os livros apócrifos apresentam ensinamentos que contradizem as doutrinas bíblicas, como a prática de doar esmolas para purificar pecados, por exemplo. Essa doutrina representa uma anomalia teológica, totalmente oposta à doutrina bíblica da justificação exclusivamente pela fé em Jesus Cristo.
Em resumo, podemos apreciar os apócrifos como obras literárias valiosas e históricas, mas não como parte da Bíblia inspirada por Deus. Portanto, não devem ser incluídos no cânon sagrado. Essa compreensão é crucial para evitar a influência de doutrinas equivocadas.
Autores Bíblicos reconhecem a autoridade dos livros apócrifos?
Por sua vez, o Antigo Testamento não reconhece a canonização desses livros, e os autores inspirados não fazem menções diretas a nenhum deles, utilizando expressões como “Assim diz o Senhor” ou “Está Escrito”, conforme Jesus frequentemente fazia ao citar o Antigo Testamento. Analogamente, os profetas não empregam expressões do tipo “como declarou o profeta Tobias” ou “como afirmou Judite”, entre outras.
Apesar disso, alguns estudiosos argumentam que pode haver algumas alusões indiretas nos apócrifos presentes na Bíblia. No entanto, isso, no máximo, indicaria que o autor bíblico conhecia esses livros, sem sugerir que eles eram considerados parte da Palavra de Deus.
De acordo com Lucas 24:44 (e o verso 27), a lista de livros reconhecidos como inspirados por Jesus Cristo não incluía os apócrifos. O texto afirma: “Então, Jesus lhes disse: ‘Foi isso que eu lhes falei enquanto ainda estava com vocês: era necessário que se cumprisse tudo o que estava escrito a meu respeito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.'” (Nova Versão Transformadora)
Aliás, no seu estudo bíblico para “abrir o entendimento” dos discípulos sobre sua morte e ressurreição (leia Lucas 24:45), Jesus não utilizou nenhum apócrifo. Pelo contrário, ele fez uso da divisão da Bíblia hebraica, composta pelos seguintes livros: a Lei de Moisés (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), os Profetas (Profetas Maiores e Profetas Menores) e os Salmos (Cânticos de louvor e adoração).
Em outras palavras, os apócrifos nunca foram reconhecidos por Jesus ou por algum profeta como parte da Bíblia Hebraica. Portanto, como cristãos, deveríamos seguir o exemplo dele, inclusive neste ponto (cf. João 13:15; 1João 2:6).
E os autores bíblicos do Novo Testamento?
Da mesma forma, o apóstolo Pedro reconheceu os escritos de Paulo como inspirados e como parte das “demais Escrituras”. No entanto, ele nem sequer cogitou a possibilidade de qualquer livro apócrifo (ou “evangelho perdido”) estar no mesmo patamar que os escritos paulinos.
Em 2 Pedro 3:15-16, ele diz: “…e considerem a paciência de nosso Senhor como salvação, assim como o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar sobre esses assuntos, como faz em todas as suas epístolas. Há, porém, algumas passagens difíceis de entender, as quais os ignorantes e instáveis deturpam, assim como deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles.” Decerto, nem mesmo os autores do Novo Testamento sugeriram a hipótese de um livro apócrifo fazer parte do cânon bíblico inspirado.
Surpreendentemente, até mesmo 1 Macabeus 9:27 reconhece que, naqueles tempos, a inspiração profética havia cessado. Portanto, o autor não via seus próprios livros (1 e 2 Macabeus) como inspirados. O versículo em questão diz: “Então, houve grande aflição em Israel, como nunca houve desde o tempo em que não se tinha mais profeta.” (1 Macabeus 9:27, Tradução Ecumênica da Bíblia, grifos acrescidos).
É inegável que o próprio autor de 1 Macabeus não atribuiu inspiração ao seu livro. Assim, por que a igreja deveria sentir-se à vontade para fazê-lo, se tal atitude não é respaldada pelos fatos?
Falta de consenso entre teólogos católicos sobre os livros apócrifos
Por exemplo, na obra mencionada anteriormente de Rodrigo Silva, é citado um comentário católico da Idade Média intitulado “Glossa Ordinária”.
De acordo com o Dr. Rodrigo, neste comentário há uma declaração reveladora que evidencia a falta de consenso entre os teólogos católicos da época sobre a aceitação dos apócrifos: “Os livros canônicos são fruto do ditado do Espírito Santo. Não sabemos, no entanto, em que tempo ou por quais autores os não canônicos ou apócrifos foram produzidos. Contudo, dado que eles sejam benéficos e úteis, e não contenham contradições com os demais livros canônicos, é permitido à Igreja lê-los para sua devoção e edificação. Sua autoridade, entretanto, não é considerada adequada em questões ainda dúbias, nem serve para confirmar a autoridade eclesiástica de um dogma, como afirmou o bem-aventurado Jerônimo em seu prólogo ao livro de Judite e aos livros de Salomão. Em contrapartida, os livros canônicos possuem uma autoridade tal que tudo o que está contido neles deve ser considerado uma verdade firme e um assunto indiscutível.”1
Certamente, esse comentário católico do período medieval sintetiza de maneira esclarecedora a perspectiva que devemos ter em relação aos apócrifos.
Conclusão
Em síntese, como cristãos que reconhecem a Bíblia como a máxima autoridade para nossa fé e conduta, é importante acatar o conselho apostólico de não ultrapassar os limites do que está escrito (1 Coríntios 4:6).
Se nos aventurarmos além do ensinamento da Palavra de Deus, sem dúvida, teremos que prestar contas diante Dele. Deus não tolera que pessoas acrescentem ou subtraiam qualquer coisa de Sua sagrada e perfeita Palavra (Provérbios 30:5-6).
É importante recordar que a Bíblia representa a revelação divina para a humanidade, sendo cada palavra nela inspirada por Ele mesmo (2 Timóteo 3:16). Portanto, qualquer tentativa de acrescentar ou remover algo da Bíblia constitui uma afronta à Sua autoridade e revelação.
Referências:
1 SILVA, Rodrigo. A Bíblia de Álef a Ômega: Um Guia Para Entender Como a Bíblia Chegou Até Nós. São Paulo: Ágape, 2020. p. 73.