
Introdução
Desde tempos imemoriais, a humanidade se viu diante da questão do caráter definitivo da morte. Incessantemente, as pessoas têm buscado compreender e lidar com o inevitável fim da existência, recorrendo a diversas formas de negação dessa realidade. No centro desses ensinamentos encontra-se a noção da imortalidade da alma, alicerçada como pilar fundamental dessa busca por sentido.
Mesmo em face dos inegáveis avanços da ciência, que nos ofereceram insights sobre a nossa natureza e o significado da vida, a crença na imortalidade da alma não diminuiu; ao contrário, tem ganhado força. Atualmente, essa crença se expande com maior intensidade através das novelas, filmes e séries.
No entanto, é importante ressaltar que a popularização dessa crença não é um fenômeno recente e deve-se, em grande medida, aos ensinamentos tradicionais das tradições católicas e protestantes. Adicionalmente, fatores como as intrigantes manifestações de médiuns e videntes, bem como a sofisticada exploração “científica” das experiências de quase-morte e a difundida comunicação espiritual com as supostas almas do passado também desempenham um papel nessa disseminação.
Como resultado, poucas crenças se tornaram tão universalmente conhecidas como a da “alma imortal”. Quase todas as pessoas têm algum grau de familiaridade com essa crença. A descrição mais comum é a seguinte: o ser humano é constituído por corpo e alma. O corpo serve como uma morada física temporária que abriga a alma. Após a morte, a alma, sendo imaterial e imortal, se separa do corpo e continua a existir conscientemente e eternamente em uma realidade que pode ser o céu, o inferno ou, de acordo com a crença católica, o purgatório.
Contudo, é fundamental indagarmos se essa crença é, de fato, uma representação precisa da realidade. Possuímos, de acordo com a maioria das tradições religiosas, uma alma imortal que se desvincula do corpo na hora da morte e segue para o céu ou para o inferno? A resposta que a maioria dos religiosos proferirá, em consonância com sua fé, é “sim”. Portanto, a questão que nos cabe agora é aprofundar nossa compreensão dessa convicção à luz da Bíblia.
* Objetivo
Antes de prosseguirmos, é importante observar que este tópico está dividido em duas partes. Esta primeira parte se destina a uma apresentação concisa da história da crença na imortalidade da alma, enquanto a segunda parte tem como objetivo uma análise crítica dessa crença à luz da Bíblia. Então, vamos lá!
Breve histórico da crença na imortalidade da alma
A mentira do Diabo expressa pela frase “não morreras” (Gn 3:04) tem repercutido até os dias de hoje. Quase todas as sociedades acreditam de alguma forma na vida após a morte. O medo causado pela ideia de deixar de viver cria a necessidade de tranquilização e segurança a respeito do que vem depois da morte.
Por mais engraçado e contraditório que possa parecer, a crença de que a morte não é o fim da existência tem levado pessoas de todas as culturas a desenvolver crenças em algum tipo de pós vida. Mas como veremos, essas crenças são apenas tentativas humanas de alcançar vida imortal e não recebem apoio da revelação divina.
Os egípcios e a crença na imortalidade da alma
A origem histórica dessa crença é algo difícil de determinar, pois todas as civilizações antigas acreditavam em algum tipo de vida consciente após a morte. Heródoto, o famoso historiador grego, que viveu no século V a.C., disse em seu livro History [História], que os egípcios foram os primeiros a ensinar que o ser humano possui uma alma imortal e separável do corpo no momento da morte.

Em nenhum lugar do mundo antigo havia mais preocupação com a vida após a morte do que no Egito. As dezenas de tumbas encontradas pelos arqueólogos ao longo das margens do rio Nilo demonstram a crença egípcia na vida após a morte. A fim de se prepararem para o outro mundo, os egípcios consumiam quantidade astronômica de tempo e dinheiro.
Rituais eram muito bem elaborados para preparar os faraós para a vida após a morte, e após os preparativos os mortos eram depositados em pirâmides gigantescas e outras tumbas bem trabalhadas, cheias de luxos que os mortos supostamente poderiam precisar no mundo dos espíritos.
O papiro de Ani, que data por volta de 1275 a.C., traduzido para o inglês por E. A. Wallis Budge, sob o título de The Egyptian Book of The Dead [O Livro dos Mortos do Antigo Egito], descreve com grandes detalhes o modo de enfrentar os desafios da jornada no pós vida rumo ao Sekhet-Aaru (campos de junco), que na mitologia egípcia, representa o paraíso e morada dos que transpuseram o juízo de Osíris.1
Os filósofos gregos e a imortalidade da alma
Antes do judaísmo, helenismo, hinduísmo, cristianismo e budismo a crença egípcia na imortalidade da alma já existia. De acordo com o Historiador Heródoto, os gregos absorveram a crença egípcia da imortalidade da alma. “Os egípcios foram também os primeiros a defender a doutrina de que a alma é imortal”, escreveu. “Essa ideia foi adotada em diferentes períodos de tempo por alguns dentre os gregos como se fosse sua própria.”
O filosofo grego Sócrates (470 – 399 a.C.) viajou ao Egito para estudar o que os egípcios ensinavam sobre a imortalidade da alma. Em seu retorno à Grécia, ele ensinou os ensinamentos que adquiriu em seus estudos a seu discípulo mais famoso, Platão (428-348 a.C.).
Em sua obra Fédon, Platão relata a última conversa que Sócrates teve com seus amigos no último dia de sua vida. Várias vezes nesse diálogo, Sócrates declara que a morte é simplesmente a “separação da alma do corpo” em que está aprisionada. Curiosamente, a linguagem usada por esse filósofo é muito semelhante à usada por muitas igrejas cristãs hoje.
Em Fédon, Platão também explicou que existe um juízo para todas as almas após a morte, de acordo com as obras feitas no corpo. As almas justas vão para o céu e as ímpias para o inferno. O ensino platônico foi introduzido pela primeira vez no judaísmo helenístico* pelo filósofo judeu Filo de Alexandria (c. 20 a.C. – 47 d.C.) e mais tarde no cristianismo por Tertuliano (c. 155 – 230), Orígenes (c.185 – 254), Agostinho ( 354 – 430) e Tomás de Aquino (1225 – 1274).
Filo tentou provar que havia uma harmonia entre Platão e Moisés, isto é, entre o pensamento religioso judaico e a filosofia grega. Ensinava que o homem tem uma alma irracional em comum com todas as criaturas e uma alma racional em comum com as almas desencarnadas no céu. Quando o corpo morre, a alma racional dos justos retorna ao céu, e a alma dos ímpios vai para o inferno sofrer a punição eterna.
A igreja cristã primitiva não acreditava na imortalidade da alma
Jesus e os apóstolos esclareceram de modo extraordinário a concepção holística da natureza humana ao ensinarem que a imortalidade não é um atributo inato do ser humano, mas um dom que será concedido aos justos na ressurreição.
Esse ensino foi encontrado inalterado em todos os escritos dos pais apostólicos (Barnabé de Alexandria, Clemente de Roma, Policarpo de Esmirna, Hermas de Roma, Inácio de Antioquia, Didaquê), e nos escritos de uma série de escritores depois deles, por exemplo, Justino, Irineu, Novaciano, Arnóbio e Lactâncio.
Em seu estudo sobre os escritos dos pais apostólicos (escritores que viveram mais próximo dos apóstolos), Le Roy conclui citando uma pesquisa semelhante feita pelo padre anglicano Henry Constable, que diz: “Do princípio ao fim, não há neles [nos pais apostólicos] nenhuma palavra sobre imortalidade da alma, que seja tão proeminente nos escritos dos pais posteriores. A imortalidade é para eles direito assegurado aos redimidos.”2
Foi a partir do final do século II que os escritores cristãos adotaram (com suas próprias pequenas modificações) o conceito platônico da imortalidade da alma. Os proponentes mais influentes dessa doutrina foram Tertuliano (155 – 240), Orígenes (c. 185 – 254), Agostinho (354 – 430) e Tomas de Aquino (1225 -1274). Haviam se convertido ao cristianismo, mas as raízes do paganismo ainda estavam vivas em suas mentes, pois trouxeram consigo não só essa, mas muitas outras filosofias pagãs para o meio cristão. Veja agora um breve resumo sobre a ideia de cada um deles.
Tertuliano e o tormento eterno das almas
Tertuliano desenvolveu a doutrina do tormento eterno dos ímpios no inferno, e da noção de imortalidade da alma para salvos e perdidos. Ele ensinava que “o tormento dos perdidos coexistirá com a alegria dos salvos.”
Tertuliano aceitava o ensino platônico da imortalidade de todas as almas, exceto a parte da pré-existência da alma. Ele dizia: “Pois algumas coisas se conhecem até pela natureza: a imortalidade da alma, por exemplo, é crida por muitos. {…] Posso utilizar, portanto, a opinião de Platão, quando declara: ‘Toda alma é imortal’.”3
Certo, agora reflita um pouco: seria Deus realmente justo e amoroso ao condenar pessoas à tortura eterna? Imagine uma pessoa que você ama e que por algum motivo tenha se perdido e ido para o inferno, para ser torturada por toda a eternidade.
Ao contemplar a pessoa amada ser torturada todos os dias, num castigo eterno, o paraíso ainda seria um lugar de eterna felicidade para você? Seria Deus um psicopata que transforma os salvos também em psicopatas após irem para o céu, a fim de que continuem felizes enquanto veem outros seres humanos queimando no fogo?
Felizmente, o Deus da Bíblia não é assim. Observe, amigo, que Tertuliano invocou a filosofia pagã de Platão para apoiar a crença na imortalidade da alma e desenvolver a doutrina do tormento eterno. Nenhuma tentativa de apoiar a crença na Bíblia foi feita. Mas por quê? Porque não há base bíblica nenhuma para isso.
A Bíblia rejeita completamente a ideia de uma alma imortal que sobrevive sem um corpo. Mesmo assim, muitos ainda preferem deixar de lado a segurança da revelação divina para se aventurar no terreno proibido de Satanás.
Orígenes e a restauração universal dos ímpios
Orígenes era considerado o homem mais erudito de sua geração. Ao rejeitar a doutrina do tormento eterno de Tertuliano, ele apresentou uma doutrina ainda mais estranha, a da restauração universal. Ele ensinava que até os pecadores mais cruéis, inclusive o próprio Diabo e seus demônios, seriam restaurados. A ideia era de que após um período de castigo corretivo no fogo do inferno, todos os pecadores estariam novamente e de forma definitiva sujeitos a Deus.
Orígenes acreditava que a alma era uma substância de “natureza eterna”, participante da natureza divina e, assim sendo, não poderia ser destruída nem ser atormentada eternamente no inferno.4 Então, a única alternativa lógica para eliminar o mal moral, conforme seu raciocínio, era restaurar a todos.
Como você pôde perceber, essa é a ideia mais ridícula de todas. Satanás, seus anjos maus e os seres humanos rebelaram-se contra Deus por livre escolha. Se Deus pretende restaurá-los fazendo com que todos voltem a ser subordinados a ele, então o livre arbítrio lhes será retirado.
Sendo assim, por que Deus simplesmente não lhes removeu a possibilidade de escolha antes que se rebelassem? Teria evitado muito sofrimento, não é mesmo? Graças a Deus, tanto a doutrina de Tertuliano, do tormento eterno, quanto a de Orígenes, da purificação universal, são antibíblicas. Estão fundamentadas no paganismo e não na palavra de Deus.
Agostinho e o ensino modificado da alma imortal
Agostinho, o famoso bispo de Hipona, é considerado por muitos o maior pensador de sua época, e exerceu uma influência tão poderosa que suas teorias sobre a imortalidade da alma e o castigo eterno dos ímpios perduraram através dos séculos.
Certa ocasião, ele perguntou: “Existe algum homem simples ou analfabeto ou mulher obscura que não acredite na imortalidade da alma e numa vida futura?”5 Esta pergunta mostra que a crença na imortalidade da alma já prevalecia naquela época, e que a Bíblia servia mais como peça de decoração do que como fonte de conhecimento.
Segundo Agostinho, a morte é apenas a destruição do corpo, mas a alma imortal continuará vivendo no céu ou sendo atormentada para sempre no inferno. Em seu livro A Cidade de Deus, ele escreveu que a alma “é, portanto, chamada de imortal, porque em certo sentido ela não cessa de viver e sentir; e o corpo é chamado de mortal porque pode ser abandonado por toda a vida e não pode sobreviver sozinho.”
Agostinho modificou a ideia de Platão sobre a alma, ensinando que o ser humano é uma alma que se utiliza de um corpo mortal e material, mas a alma não está aprisionada no corpo como Platão afirmava, nem é preexistente, mas passa a existir quando encarna em um corpo. Essa versão modificada do platonismo, defendida por Agostinho, foi popular em grande parte do pensamento católico medieval até o advento de Tomás de Aquino.
Tomás de Aquino e a doutrina da alma imortal
A maioria dos católicos considera Tomás de Aquino seu maior teólogo. A forma como ele definiu a doutrina católica foi genial. A respeito da natureza humana, seu pensamento era menos radical em comparação a seus antecessores. Sua forma de pensar recebeu forte influência da filosofia aristotélica.
Tomás defendia a ideia de que a alma é a forma do corpo, em contraste com a visão platônica agostiniana, segundo a qual a alma habita o corpo por certo tempo sem formar com ele um ser substancial. Ensinava também que existe uma unidade substancial entre alma e corpo: “É claro que a alma está naturalmente unida ao corpo porque, por sua essência, constitui a forma do corpo. Portanto, é contrário à natureza da alma estar despojada do corpo.”6 A alma pode existir independentemente do corpo, dizia Aquino, mas deseja se unir a ele novamente no dia da ressurreição.
Aquino se opôs completamente àqueles que defendiam a posição bíblica de que a alma nada mais é do que a energia vital que anima o corpo, que é mortal, até que Deus lhe conceda a imortalidade na ressurreição.
Aquino definiu a alma imortal como a forma do corpo, que se tornou o ensinamento tradicional da Igreja Católica. O novo Catecismo da Igreja Católica reflete bem esse ensinamento: “A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a ‘forma’ do corpo; quer dizer, é graças à alma espiritual que o corpo, constituído de matéria, é um corpo humano e vivo. No homem, o espírito e a matéria não são duas naturezas unidas, mas a sua união forma uma única natureza. A Igreja ensina que cada alma espiritual é criada por Deus de modo imediato e não produzida pelos pais; e que é imortal, isto é, não morre quando, na morte, se separa do corpo; e que se unirá de novo ao corpo na ressurreição final.”7
No entanto, como vimos, essa definição do Catecismo da Igreja Católica vem das ideias de Tomás de Aquino impregnadas de filosofia pagã, não da Palavra de Deus. Tal ensino é completamente estranho à Bíblia.
Conclusão
Ao longo de toda a história humana, Satanás tem conseguido manter praticamente intacta a mentira contada a Adão e Eva no jardim “é certo que não morrereis” (Gn 3:4). A crença na imortalidade da alma, presente nas mais diversas civilizações há milênios, sempre foi a embalagem perfeita para esse engano.
A fim de enfrentar o medo que a morte sempre causou, o ser humano passou a crer que possui dentro de si um elemento divino, capaz de continuar vivendo mesmo após a morte do corpo; e que a morte é apenas a passagem de uma vida para outra.
Infelizmente, esse ensino dualista foi acolhido pela igreja cristã no fim do II século e permanece no meio cristão até o dia de hoje. E como resultado, a necessidade da volta de Jesus para conceder a imortalidade aos crentes na ressurreição final é anulada (I Co 15:54; I Ts 4:16, 17). Quem quer que seja que acredite numa alma imortal precisa rever sua posição.
Não se deixe enganar mais, amigo. A doutrina da imortalidade da alma é uma mentira! Nossa única proteção contra esse engano diabólico consiste em compreender aquilo que a Bíblia ensina sobre o que constitui a natureza humana. (Clique aqui para ler a segunda parte).
Um forte abraço e fique com Deus!
Referências:
1 E. A. Wallis Budge, O livro dos Mortos do Antigo Egito (2021), 3ª ed. p. 11-12.
2 Examinar Le Roy Edwin Froom, The Conditionalist Faith of Our Fathers (1961), v. 1, p. 632 – 755.
3 Tetuliano, On the Resurrection, capítulo 1, seção 36, em Ante-Nicene Fathers, v. 3, p. 547.
4 Orígenes, De Principiis, livro 4, capítulo 1, seção 36, em Ante-Nicene Fathers, v. 4, p. 381.
5 Agostinho, Epistle 137, capítulo 3.
6 Tomás de Aquino, Summa contra Gentiles IV, 79.
7 Catecismo da igreja Católica (1994), p. 93.
* Samuele Bacchiocchi, Crenças Populares, capítulo 2, p. 48 – 60.
* Helenístico: período intertestamentário, que são os quatro séculos que separam o fim do Antigo Testamento do início do Novo. Nesse mesmo período, um grupo de escritores judeus influenciados pela filosofia de Platão ensinava às pessoas a acreditar na imortalidade da alma e a rezar pelos mortos, além de negar a ressurreição. Os ensinamentos desse grupo podem ser encontrados nos livros apócrifos do Antigo Testamento, e aparecem na Bíblia católica, mas não na Bíblia protestante. Esses livros são: 1 e 2 Macabeus, Baruque, Judite, acréscimos em Daniel e Ester, Eclesiástico, Tobias e Sabedoria de Salomão.
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Uma resposta
Há um equívoco no texto sobre o período helenístico, quando se diz que havia um grupo de escritores judeus que negavam a ressurreição e quando é mencionado o segundo livro de Macabeus entre outros como sendo desses escritores. O segundo livro de Macabeus, é bem verdade, que ensina sobre orar pelos mortos, mas não nega a ressurreição. Muito pelo contrário. No mesmo trecho que se fala sobre orar pelos mortos, fala-se também da crença na ressurreição.